Zé Cabala e o homem de papel
Torero
Quando cheguei à casa do ilustre mestre, ele estava no quintal disputando um gol a gol com Gulliver, seu assistente anão.
“Goool”, gritou Zé Cabala. “Onze a três!”
“Por cobertura não vale”, reclamou Gulliver.
Então os dois perceberam a minha presença. Zé Cabala pôs seu turbante e veio falar comigo.
“O que vai ser hoje, caro foliculário?”
“Aproveitando a eleição, eu gostaria de falar com o espírito de algum jogador que tivesse tido um problema político.”
“Certo, certo…”, falou o supino sábio enquanto dava uns tapas em sua túnica branca para tirar um pouco da grama.
Em seguida Zé Cabala respirou fundo e, ali mesmo no quintal, começou a girar feito a Mulher-Maravilha (para lembrar como era isso, clique na foto abaixo).
Alguns segundos depois, ainda meio tonto e apoiando-se na cabeça de Gulliver, ele disse:
“Matthias Sindelar, ao seu dispor.”
“Sindelar, o austríaco que era chamado de o Mozart do futebol?”
“Esse mesmo. Já ouviu falar de mim?”
“Um pouco. Você era o craque do time-maravilha, não era?”
“Sim, eu era do Wünderteam. O time que deveria ter vencido a Copa de 1934. Ah, como eu odeio os fascistas e os nazistas… Eles acabaram com a minha vida!”
“Calma, não vamos colocar os zagueiros na frente dos volantes. Comecemos pelo começo. Onde você nasceu?”
“Foi em 1903, numa cidadezinha chamada Kozlau, que era na Áustria mas hoje, por conta da mudança dos mapas, fica na República Tcheca. Mas só fiquei dois anos lá. Depois minha família se mudou para Viena, para um bairro do subúrbio chamado Favoriten.”
“Aí sua vida melhorou?”
“Por algum tempo, mas então veio a I Guerra Mundial e meu pai morreu em combate. Eu tinha 14 anos. Tive que começar a trabalhar como ajudante de mecânico para sustentar minha mãe e minhas três irmãs. A única coisa que me divertia era jogar futebol na rua com uma bola de feita de trapos. E essa foi minha sorte, porque um dia o pessoal do Hertha de Viena viu uma partida e me chamou para jogar lá. Fiquei no Hertha até os 21 anos.”
“E depois?”
“Depois, em 1924, fui para o Áustria Viena, o time de camisas violetas. Era um clube ligado à classe média judaica. E logo vieram os títulos. Em 1925 faturamos a Copa Austríaca e, em 1926, quando acabou o amadorismo de vez, ganhamos a copa austríaca e o campeonato nacional. Depois ainda ganharíamos mais três copas nacionais e duas Copas Mitropas.”
“Mitropas? Nunca ouvi falar disso.”
“A Copa Mitropa era uma Copa dos times da Europa Central. Depois ela acabou se transformando na Copa dos Campeões.”
“Ah…, essa eu conheço.”
“Pois bem, vencemos a Mitropa em 1933 e 1936. Joguei no Áustria até 1939, quando aconteceu aquela tra…, bem você deve saber.”
“Já chegamos lá. Por enquanto, eu queria saber como era o seu estilo.”
“Eu era alto e magro, e tinha um estilo leve, elegante. Não era à toa que me chamavam de Der Papierene, que quer dizer ‘feito de papel’.”
“Você não devia ter um corpo muito atlético.”
“Não mesmo. E, para piorar, eu adorava fumar, beber e jogar baralho. Sem falar que me divertia um bocado com prostitutas nos bordéis e detestava treinar.”
“Mesmo com isso tudo ainda foi um grande jogador?”
“Talvez por isso tudo. Só joga bem quem está feliz.”
“E o tal do Wünderteam?”
“Olha, de 1930 a 1933, a seleção austríaca disputou 16 partidas. Ganhamos 13, empatamos duas e perdemos só uma, para a Inglaterra, lá. Foi um belo 4 a 3. Mas, em Viena, conseguimos a vingança: 2 a 1. E entre as vitórias tivemos goleadas de 4 x 0 na Franca, 5 x 0 na Alemanha, 6 x 1 na Bélgica 8 x 2 na Hungria e 8 x 1 na Suíça.”
“Então vocês eram os favoritos para vencer a Copa de 1934.”
“Sim. E começamos bem. Vencemos a França nas oitavas por 3 a 2, com um gol meu, e a Hungria na quartas por 2 a 1. Então, na semifinal, pegamos a Itália, que nós tínhamos vencido há pouco tempo, na própria Itália, por 2 a 1. Mas dessa vez foi diferente…”
“Ah, já sei… Esta paerte da história é famosa. A Copa de 1934 foi na Itália e o ditador Benito Mussolini fez de tudo para conseguir a Copa.”
“Pois é… Dizem que o juiz da nossa partida, o sueco Ivan Eklind, jantou com o Mussolini uns dias antes. E o cardápio deve ter sido ótimo, porque durante o jogo o Eklind fez de tudo. Pode perguntar para qualquer uma das sessenta mil almas que estavam no San Siro naquele dia. O Eklind não via uma falta a nosso favor, não marcou um pênalti claríssimo em cima de mim e, no fim do jogo, ele, sem querer, é claro, bateu a cabeça numa bola que vinha na minha direção na grande área.
“Puxa, que escândalo!”
“Agora me pergunte se ele foi punido?”
“Ele foi punido?”
“Não! Pelo contrário! Ganhou o privilégio de apitar a final! E aí a Itália ganhou na prorrogação.”
“Um absurdo!”
“Eu apanhei tanto naquele jogo que nem consegui participar da disputa do terceiro lugar. E aí perdemos para a Alemanha por 3 a 2. Aliás, esse jogo foi desastroso.Áustria e Alemanha tinham uniformes iguais, então nós tivemos que jogar com umas camisas do Nápoli emprestadas.”
“E a Copa seguinte?”
“Bem, passamos tranqüilos pela fase eliminatória. Mas, no dia 13 de março de 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha. Ou seja, sumimos do mapa. Dali em diante os jogadores austríacos teriam que jogar pela seleção da Alemanha. Veja que ironia, fomos roubados pelos fascistas e agora teríamos que servir aos nazistas.”
“E como foi sua carreira na seleção alemã?”
“Não foi. Eu me recusei a jogar. Sempre dizia que estava machucado. Aí a Gestapo começou a me investigar. E descobriu que eu era amigo de judeus e simpatizante dos comunistas.”
“Xi…”
“E isso não era a pior coisa na minha ficha. O pior aconteceu na partida para festejar a anexação. Havia no ar a sensação de que nós não poderíamos vencer. Poderia ser perigoso para a saúde, entende?”
“Sei, sei…”
“Bem, por minha sugestão, nós jogamos de camisas e meias vermelhas e calções brancos, as cores da bandeira da Áustria. E nós dominávamos a partida com facilidade. Mas, “estranhamente”, perdíamos todas as chances. Eu mesmo já tinha desperdiçado três oportunidades na cara do gol. Era uma humilhação, sabe? Mas fazer o quê? Desafiar os alemães?”
“Que situação difícil…”
“Ficamos assim, naquela lenga-lenga, até o meio do segundo tempo. Aí o público começou a vaiar. Ah, como aquela vaia doeu… E ela doeu porque estava certa. Nós não podíamos abaixar a cabeça! Tínhamos que desafiar os alemães. Então nós começamos a correr feito doidos e o jogo virou uma guerra. Logo depois, a bola sobrou para mim na meia lua. Eu dei um toque sutil, encobrindo o goleiro que estava adiantado. O público delirou! Ainda mais quando eu fui até a tribuna de honra onde estavam as autoridades nazistas, e dancei uns passos de Rheinland Pfalz, uma dança popular austríaca. Foi uma gargalhada geral em cima das autoridades alemãs. Depois disso, nós enchemos ainda mais de brio e fizemos dois a zero.”
“E os alemães deixaram isso ficar assim?”
“Uns meses depois, eu e minha namorada, uma judia italiana, fomos encontrados mortos no quarto dela.”
“Foi a Gestapo?”
Ele não me respondeu. Apenas ajeitou o turbante e disse:
“Mais de 40 mil pessoas foram ao meu enterro. Fui enterrado no mesmo cemitério onde estão Brahms, Schubert e Johann Strauss. Minha tumba fica perto da do Beethoven. Um lugar apropriado para o Mozart do futebol, rá, rá! A vida tem suas ironias. E a morte também.”
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roberto castralli
05/11/2010 20:55:09
torero,cada época, cada país,tem sua estrela nos campos de futebol,alguns tem a honra de ter heróis.
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Torero
05/11/2010 12:10:54
Daria um belo filme mesmo, com poucas cenas de futebol.
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André Bernardino
05/11/2010 11:22:40
Eu dei uma enrolada pra ler esse texto, pois é meio grandinho. Mas eis que essa é uma das melhores encarnações do Zé Cabala. Mto bom o texto, tema interessantíssimo. Vc não tem contatos em Hollywood? Os judeus de lá adorariam um filme desses. Pode ser lançado em ano de Copa ainda por cima, hein?
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oliveiros
05/11/2010 10:39:41
Eu fico fascinado com as histórias do zé cabala.
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Torero
03/11/2010 18:29:18
Quase sim. Ou seja, em breve será editado um livro com vários textos dele, mas também teremos outros.
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Torero
03/11/2010 18:28:13
Pelo que li, as opções são assassinato, acidente e suicídio. Mas não há certeza. Creio que as possibilidades são 50%, 30% e 20%.
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Torero
03/11/2010 18:25:25
Não, ainda não. O garrincha é impossível, o Didi, talvez.
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Torero
03/11/2010 18:24:51
Vou pesquisar.
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Torero
03/11/2010 18:24:31
Vou procurar.
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Ricardo Fiore
03/11/2010 17:26:01
Mais um texto fabuloso do Zé Cabala!! Fantástico!! Agora uma sugestão e uma pergunta. A sugestão é pra entrevistar bons jogadores que morreram cedo em acidentes de automóveis antes de estourarem no mercado nacional, como Sérgio Gil e Mahicon Librelatto. A pergunta: Teremos um livro com as crônicas de Zé Cabala, caro foliculário?Abraços
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Marcio R. Castro
03/11/2010 14:49:26
Realmente, uma grande história, que eu também não conhecia. E pensei exatamente o mesmo, daria um filmão. Pelo que você pesquisou, Torero, Sindelar e sua namorada foram assassinados na cara dura ou os nazistas simularam alguma pataquada?
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Danyllo Magalhães de Morais
03/11/2010 13:35:50
Essa história lembra um pouco a do Dinamo de Kiev, não??
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Alex Pina
03/11/2010 13:00:53
Hei Torero, já houve uma entrevista do Zé Cabala com o Garrincha ou o Didi Folha-Seca??? se houve me informe a data para que eu leia.
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Lucas
03/11/2010 12:31:55
Essa história lembra a partida da morte dos jogadores do Dinamo de Kiev.Que tal um texto sobre isso Torero?
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Andre Araujo
03/11/2010 11:43:52
Olá Torero.. bela história... Nessa linha, tem um livro que conta a história de uns jogadores que haviam jogado no Dínamo de Kiev, chama-se Futebol e Guerra de Ady Dougan. É um destes livros que conseguem contar histórias de futebol sem deixar o cenário histórico de lado.. Te recomendo...
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Torero
03/11/2010 11:16:48
também achei estranho que eu não a conhecesse. Tropecei nela por acaso, ao pesquisar o Fritz Walter. Esse jogo entre Áustria e Alemanha daria um bom filme de futebol.
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Claudio Salga/Santos
03/11/2010 09:30:27
Torero,uma história fascinante que eu desconhecia totalmente, o que já acho um absurdo. Enquanto a mídia procura endeusamentos fáceis,rápidos, para consolar ou contentar uma geração totalmente perdida, superações e exemplos como deste jogador não encontram espaço para a divulgação.Gosto do seu blog por isto.Este é um dos poucos espaços que encontramos para obter este conhecimento.Acho até que esta história deveria servir senão como preleção,como divulgação aos jogodores atuais para que eles possam ver o que realmente era ter uma dificuldade,um amor a um país, um amor ao seu time.sds
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Antônio Carlos
03/11/2010 08:28:11
Plataforma essa que, diga-se de passagem, é muito ruim!!Antes víamos vários comentários na mesma tela, você podia colocar fotografias, etc...É incrível como algumas coisas estão sempre ótimas (o seu blog, por exemplo) e outras mudam para PIOR (a plataforma do UOL, por exemplo).
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