Blog do Torero

Zé Cabala e o homem-aranha
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Torero

Quando cheguei ao ashram de Zé Cabala, um sobrado pintado de amarelo berrante no Jardim Lambretta, notei que a porta estava aberta e que havia uma certa gritaria lá dentro. Entrei o mais rápido que pude a fim de ajudar se houvesse algum problema.

Porém, qual não foi minha surpresa quando vi o sábio dos sábios em cima da mesa, gritando “Mate este monstro, mate este monstro!”, e Gulliver, seu assistente anão, correndo em torno da mesa enpunhando uma vassoura.

“Barata?”, perguntei.

“E você acha que eu teria medo de uma barata? É uma aranha. Uma aranha enorme, daquelas que atacam cidades em filme B.”

Foi então que vi um minúsculo exemplar do aracnídeo passando perto do meu pé e… cleque, pisei no bicho.

“Pronto, matei.”

“Sério? Você é um herói, caro foliculário! Só por causa disso hoje vou lhe fazer um desconto de 10%.”

“Quanta generosidade…”

“Quem você quer entrevistar?”

“Por uma grande coincidência, dessas que só acontecem nos textos de escritores de terceira, quero falar com o maior goleiro de todos os tempos.”

“O Aranha Negra? Detesto aranhas! Isso vai lhe custar o dobro.”

Eu aceitei, é claro.

Então Zé Cabala pôs-se a fazer alguns passos de dança russa e, depois de algum tempo, estendeu-me a mão e disse: “Muito prazer, Lev Yashin.”

“Pois bem, senhor Yashin, a primeira coisa que quero saber é o motivo do seu apelido.”

“É que eu sempre me vestia de preto e tinham braços longos.”

“Confesso que não vi nenhuma defesa sua…”

“É só olhar no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=47fTQnYMnTY.”

“Depois eu olho. Mas eu queria entender o que o senhor fazia de diferente.”

“Olha, bastante coisa. Por exemplo, eu fui um dos primeiros a socar a bola nos momentos de maior aperto junto da pequena área. Eu também camandava a defesa nos lances de bola parada, era rápido nas jogadas de contra-ataque, tinha elasticidade e muita coragem. Saía no pé do atacante como um raio. Aliás, outro apelido que eu tive foi raio negro. E também me chamaram de Pantera Negra por causa dos meus saltos.”

“O senhor sempre quis ser goleiro?”

“Sempre. Mas no começo queria ser goleiro de hóquei no gelo.”

“Sério?”

“Sério. Comecei no hóquei, no time da fábrica de ferramentas onde eu trabalhava. Depois, aos 14 anos, comecei a jogar futebol. E fiquei nos dois esportes por um bom tempo.”

“Quando se decidiu?”

“Em 1953. Eu já era reserva do Dínamo há 4 anos. Mas em 1953 aconteceram duas coisas: o goleiro titular, o grande Aleksey Khomich, se aposentou. E eu fui convocado para a seleção soviética de hóquei. Aí não teve jeito. Tive que escolher. E escolhi o futebol.”

“Ficou no Dínamo por toda a carreira?”

“Fiquei. De 1949 a 1971. Só parei com 42 anos. Vencemos o campeonato nacional cinco vezes, e três vezes a Copa da URSS. E eu fui o melhor jogador do campeonato 14 vezes.”

“E na seleção soviética?”

“Ganhamos as Olimpíadas de 1956 e a Eurocopa 1960. Sem falar que participei de quatro Copas do Mundo, de 1958 a 1970. Se bem que nesta última já era reserva.”

“O senhor lembra qual foi o seu grande jogo numa Copa?”

“Tem que escolher só um? Assim fica difícil. Bem, acho que a minha fama começou em 1958, num jogo contra a Áustria, quando eu defendi um pênalti. Aliás, há quem diga que defendi 150 pênaltis na minha carreira, mas deve ser exagero.”

“Vocês enfrentaram o Brasil nesta Copa, não é?”

Se meu russo não falha, aqui está escrito: Lev Yashin não era uma estrela. Nas suas horas de folga, gostava de jogar futebol com as crianças na rua.

“Para meu azar, fui o primeiro goleiro a enfrentar Pelé e Garrincha jogando juntos. E só tomei dois gols. Bem menos que França e Suécia, que nos jogos seguintes levariam cinco cada uma.”

“E como foi em 1962?”

“Fiz a pior partida da minha vida contra os colombianos. Ganhávamos de 4 a1, mas falhei duas vezes, numa delas até levei um gol olímpico, e eles acabaram empatando o jogo. Aí pegamos o Chile nas quartas e falhei de novo: pensava que o lance era em dois toques, mas o jogador chutou direto e marcou.”

“Um frango!”

“Na Rússia chamamos de borboleta. O pior é que perdemos por 2 a 1 e caímos fora da Copa. Ah, não é fácil ser goleiro…, não se pode falhar nunca. Até começaram a dizer que eu estava acabado para o futebol.”

“E estava?”

“Que nada! 1963 foi meu melhor ano. Tomei apenas 6 gols em 27 jogos. Fui tão bem que ganhei a Bola de Ouro como melhor jogador da Europa. Até hoje sou o único goleiro que recebeu este prêmio.”

“O senhor tinha algum segredo?”

“Bem, antes de cada partida, para acalmar os nervos, eu fumava um cigarrinho, e, para tonificar os músculos, tomava um copinho de vodka.”

“Fumava e bebia antes do jogo?!”

“Pois é. E adorei a caipirinha brasileira.”

“Como assim?”

“Eu era fã do futebol brasileiro e do goleiro Gilmar. Então, em 1965, consegui uma licença para visitar o Brasil. Fiquei no Rio de Janeiro. Passava as manhãs na praia e às tardes treinava os goleiros do Flamengo, só para manter a forma.”

“E o que fez quando se aposentou?”

Monumento a Yashin

“Passei a treinar equipes juvenis e a trabalhar como professor de educação física. Também participei das comissões técnicas do Dínamo e da seleção.”

“Uma boa aposentadoria.”

“Foi. Mas em 1984, com 55 anos, tive que amputar uma perna. Sabe lá o que é para um goleiro perder uma perna? A Aranha Negra ficou manca… Seis anos depois, passei para o lado de baixo do gramado, destino de todos nós, goleiros ou centroavantes. Contra o tempo não há defesa.”


 


Analogias para senhoras de fino trato
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Torero

(Publicado originalmente na Folha de S.Paulo um pouco antes da Copa de 98.)

Os homens esperam ansiosamente pela Copa do Mundo, ainda mais se forem vendedores de materiais esportivos e fogos de artifício. Porém, curiosamente, as mulheres não têm lá muito interesse pelo assunto. Há exceções, é claro, mas a maioria ainda acha o futebol uma atividade sem sentido e beleza.

Tanto é assim que apenas 3,7% dos e-mails futebolísticos que recebo vêm de mulheres.

Creio que, ficando indiferente a essa febre, elas possam estar dando uma mostra de liberdade de espírito e independência intelectual. Mas também é possível que não se interessem pela Copa por pura ignorância futebolística.

Portanto, a fim de facilitar o entendimento dos mistérios do futebol, daqui até a Copa, toda terça-feira, publicarei estas ''Analogias paras senhoras de fino trato'', a fim de facilitar a compreensão do esporte para as filhas de Eva.

No primeiro capítulo, hoje, optei por fazer uma comparação com algo que todas conhecem: o corpo humano.

O goleiro, por exemplo, leitoras, são como os glóbulos brancos, também chamados de leucócitos. Eles devem evitar que o gol seja invadido por células inimigas e devem neutralizar qualquer ataque contra o sistema imunológico. Goleiros e leucócitos desempenham um trabalho sacrificado, mas quase nunca lembramos deles. Apenas quando falham, e aí ficamos doentes.

Já os laterais, com a concentração da marcação no meio-campo, passaram a assumir funções mais importantes. Hoje, além de marcar, eles têm que se projetar ao ataque e fazer a função dos antigos pontas. Com tanto trabalho, só uma comparação é possível: eles são os pulmões do time.

Os zagueiros devem ser associados ao estômago. Eles trabalham o tempo todo e têm que estar preparados para digerir qualquer coisa. Se algum atacante ousar chegar até ali, deve ser esmagado e comprimido. Alguns beques, como Júnior Baiano, costumam levar isso ao pé da letra.

Os dois volantes são como o coração. Aliás, um faz a função de sístole e outro de diástole. Eles são vitais para o bom funcionamento do time, pois bombeiam a bola para o ataque e oxigenam a defesa. Assim como o coração, devem bater, mas não demais.

Quanto aos meias de ligação, não há dúvida: eles são o cérebro de uma equipe. Em fração de segundos, eles têm que dominar a bola, perceber alguém se deslocando e mandar a bola no pé desse companheiro antes de ser derrubado por um volante do outro time.

Por fim, há os atacantes. Gostaria de evitar certo tipo de comparações, principalmente porque os leitores da Folha são sofisticados, inteligentes e sutis. Por isso, cara leitora, tentarei ser discreto e não farei aqui uma analogia explícita. Direi apenas que o atacante tem que saber jogar enfiado, ser incisivo, firme, obsessivo, destemido e, principalmente, tem que crescer em determinados momentos da partida.

Enfim, um time é como um corpo humano. Tem várias partes, cada uma com uma função e, se uma delas falha, podemos sofrer uma morte súbita.


Links legais
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Torero

Para os fanáticos por futebol, uma boa pedida é este site:  www.pelejas.com.

Ele traz as fichas de todos os jogos de Palmeiras, Corinthians e São Paulo, com um sistema de pesquisa interessante. O próximo será o Flamengo.


Ziza, o ranzinza, e o Campeonato Brasileiro
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Torero

Quando cheguei ao Bar da Preta, só havia dois lugares no balcão, um de cada lado de Ziza, o ranzinza.

Sem outra opção, sentei-me junto, conhecido por reclamar mais que aposentado na fila do banco.

“Bom dia, seu Ziza.”

“Só se for para você.”

“Qual o problema?”

“Vou ficar cego.”

“Catarata?”

“Não. Farol. Já viu esses novos faróis de xenon que os boys estão colocando no carro deles? Quem será que foi a besta que permitiu isso. Deve estar ganhando um bom dinheiro por fora, porque esse farol é um atentado à visão alheia.”

“É, é desagradável mesmo…”

Ziza não foi uma criança muito simpática.

“Pior que isso, só aqueles vidros com insufilm 110%. Parece tudo carro de traficante. Não dá para ver o que tem na frente. Deve acontecer um monte de batida por conta desse treco. Mais um que deve ter ganho uma boa grana para liberar o negócio.”

“Deve, deve…”

Também não gosto dessa história de gás encanado. Chegou lá no meu prédio e agora vou ser obrigado a usar. O treco é caro para dedéu! A companhia de gás não tem mais que fazer entrega e ainda cobra mais caro? E a tal da livre concorrência? Aí tem mais um que ganhou por fora…”

“Bem…”

“É que nem essa nova tomada brasileira. Já viu cretinice maior? Obrigar o país todo a mudar para uma tomada que só existe aqui. Pode apostar que é mais um ganhando dinheiro no mole.”

Ziza de bom humor.

Para acabar com as reclamações, decidi falar sobre futebol: E o Brasileiro, hein? Vai ser disputado até o final.

“Vai. Mas não é competitividade. É incompetência.”

“Não entendi.”

“Se a gente tivesse um time realmente bom este ano, agora ele já estava comemorando o campeonato. Olha só o Fluminense, por exemplo. Abriu um monte de pontos e depois começou a patinar. Desde que o Muricy começou a dar risada, já não é a mesma coisa…”

“Foi só um deslize, ele já voltou a ficar sério.”

“O Corinthians, a mesma coisa. Se não tivesse derrapado na fase Adilson Batista, já teria dado a volta olímpica.”

“Pode ser…”

Ziza na véspera de Natal

“E o Cruzeiro? Se o Mineirão estivesse funcionando, não tinha perdido tantos pontos em casa e agora já estaria com mais uma estrela. O Santos, se tivesse o Ganso, não teria desperdiçado tanto ponto bobo e estaria lá em cima da tabela. Até para o lanterna, em casa, os caras perderam.”

“Nem me fale…”

“O São Paulo marcou passo com técnico e o Botafogo, se tivesse vencido metade dos 16 empates, estaria com 71 pontos, disparado na liderança.”

“O Botafogo é fogo…”

“De palha. E lá embaixo da tabela é a mesma coisa. Um monte de time já podia ter escapado do rebaixamento. O Avaí se empolgou demais e perdeu a mão. Quer dizer, o pé. O Guarani começou bem, mas não viu a decadência chegando e acordou tarde demais. O Goiás ficou com briga política e vai cair. O Atlético Mineiro ficou enrolando com o Luxemburgo quando estava na cara que a coisa já tinha desandado…”

“É mesmo.”

“Por isso, este não vai ter um time que vai ser campeão, mas um monte que não será.”

Ziza quando ainda era um espermatozóide

“Você está sendo muito ranzinza, Ziza.

“Que nada. Os clubes é que não enxergam as coisas. É como se tivesse um daqueles faróis xenon apontando para eles, ou um daqueles insufilmes de traficante atrapalhando a visão. Faltou gás ao pessoal. Faltou meter o dedo na tomada para tomar um choque e se ligar.”

“Se você diz…”

“Digo e repito”, falou Ziza segurando sua média. “O Campeonato Brasileiro está que nem esse pão na ch…”

“O que tem esse pão na chapa?”, perguntou a Preta, segurando uma faca e uma laranja.

“Bem…”, começou a falar Ziza enquanto Preta cortava a laranja em duas metades e a colocava no espremedor com ares de sadismo. “O Brasileiro está como este pão porque a gente não consegue viver sem ele”, completou Ziza.

Ziza é ranzinza, mas não é bobo.


Sempre aos domingos: Pelé e a filosofia
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Torero

Luiz Guilherme Piva

 

A história da filosofia ocidental tem um grande divisor de águas, ocorrido em meados dos anos 1000. E o embate entre as duas correntes conforma muito das diferenças na formação das sociedades modernas. Isso porque não houve Pelé naquela época – cuja existência poderia ter suprimido as divergências entre os pensadores.

Uma das correntes, a mais antiga, pré-socrática, que deu base ao pensamento religioso, escolástico, metafísico e tomista, predominou na Europa até cerca de 1500, mas depois se concentrou na Península Ibérica e migrou para a América Central e do Sul, presidindo a formação intelectual e social das colônias hispânicas e portuguesas. Para ela, a verdade existe em si e cabe ao homem desvendá-la – sem nunca consegui-lo, visto que só vislumbramos arremedos e ilusões, sombras na caverna, manifestações parciais. A essência, plena e una, está guardada acima e fora do nosso alcance.

É óbvio que, se tivessem visto Pelé jogar, os próceres dessa doutrina a teriam renegado. A essência plena, a verdade maior do futebol estava ali, de carne e osso, correndo, chutando, driblando. Não eram sombras enganosas, não eram ilusões ou deformações da nossa parca apreensão intelectual.

A outra corrente, fortalecida a partir de 1500, mas sobretudo a partir do século XVIII, negou a metafísica e consolidou o império da razão e do experimentalismo (ou empirismo), dando base ao iluminismo, ao racionalismo e ao cientificismo. Para ela, que vingou nos países saxões e germânicos, principalmente, e migrou para a América do Norte, conformando parte de sua história, não existe a verdade essencial, só o mundo concreto: a verdade é construída pelo conhecimento.

É óbvio que, se tivessem visto Pelé jogar, também os fundadores dessa doutrina a abjurariam. Não poderia ser deste mundo o ser que corria, chutava e driblava como ele o fazia. Tratava-se, acreditariam, de simulacro ou sombra de algo maior, perfeito, ao qual jamais teríamos acesso por meio da razão.

Pode-se cogitar, então, que as duas correntes existiriam da mesma forma, apenas trocando de lugar os defensores de cada uma – e então tudo seguiria igual, com suas conseqüências culturais, sociais e políticas intactas.

Pode ser. Mas não creio. Acho que, se tivessem visto Pelé jogar, as duas acabariam convergindo para um leito comum – que restou para sempre, desde então, inexistente e inviável – que poderia ter ocupado o curso central do pensamento humano, no qual razão e metafísica ocupassem, harmoniosamente, seus respectivos espaços e dimensões. Não ocorreu.

Até hoje ciência e religião se digladiam, e alguns poucos ainda buscam o encaixe que as concilie. Mas em vão. A ausência de Pelé naqueles momentos inaugurais do pensamento moderno privou para sempre a humanidade e as sociedades da sua síntese fundamental.

E ainda hoje nos pegamos, cientistas materialistas de um lado, e metafísicos essencialistas de outro, ocupados com duelos e dúvidas em torno de questões menores como a verdade, o movimento, o tempo, a natureza e o ser.

Quando poderíamos já ter resolvido tais pendengas para nos dedicar ao que de fato é grandioso, que são as certezas e dúvidas que afloram na razão e no espírito ao ver e rever Pelé jogar.
Luiz Guilherme Piva é autor de Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A miséria da economia e da política (Manole)


Cinco livros e uma toreroteca
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Torero

Há tempos eu não escrevo aqui sobre livros e uns leitores até reclamaram. Então vou quitar toda a minha dívida de uma vez, escrevendo sobre vários de um só gole. Não farei críticas sérias, claro, mas sim umas impressões de leitura.

Eu gosto muito deste autor. Mas, deste livro, nem tanto. Ele reconta um caso verídico acontecido com Sir Arthur Conan Doyle, que, na vida real, deu uma de detetive e ajudou um jovem advogado que foi preso e acusado de certos crimes. Para os fãs de Sherlock Holmes, o livro pode funcionar como uma biografia de seu autor, e aí se justifica. Mas, como romance, ficou um tanto gordo demais, e tive que lutar um pouco para chegar ao fim.

 É um livro que conta em pílulas a história de Cuba. Mas a ideia não é contar uma história exata, tanto que não há nomes nem datas. Creio que a intenção de Cabrera Infante é criar um romance caleidoscópico ou algo assim, mostrando mais a natureza moral da ilha do que sua história. A leitura foi rápida e leve, com vários bons momentos, mas não chegou a ser um livro marcante. Certamente o será para quem se interessa e conhece mais profundamente a história de Cuba.
 
 Esse é bem complicado de explicar. Não acontece nada, mas você se interessa pela história. Não há uma trama, um fato central, mas as descrições de sentimentos e sensações são tão bem feitas que você tem curiosidade em saber o que acontece com o personagem (um menino que vive na África do Sul no pós-guerra). Porém, não acontece muita coisa. O livro faz parte de uma trilogia. Estou cá em dúvida se leio ou não a segunda parte. Acho que lerei.

 Leandro Narloch trabalhou na melhor e na pior revistas do Brasil, pelo menos, na minha opinião. A saber, a Superinteressante e a Veja. A primeira tem diagramação revolucionária, textos excelentes e uma busca pelo saber, uma tentativa de entender os fatos. A segunda, de nobre passado, tornou-se panfletária e hoje já não inspira a menor confiança. Já não busca entender os fatos, mas explicá-los conforme sua ideologia. Este livro é um tanto das duas coisas. Há ótimos trechos, em que se busca dar um novo enfoque, descobrir um novo ângulo sobre um assunto (como, por exemplo, o que fala sobre os índios, que não os mostra como um bom selvagem, como um ser cândido e puro, destituído de má índole) e outros em que o autor tenta apenas chocar, como o que fala que Gregório de Martos foi um dedo-duro, o que não tem o menor apoio em dados históricos. Ou seja, quando Narloch investiga sem preconceito, parece que estamos diante de uma boa reportagem da Superinteressante. Quando tenta chocar por chocar, parece que estamos lendo uma daquelas reportagens parciais da Veja.

 E eis cá o melhor livro destes cinco. Ou, pelo menos, o que me deu mais prazer. Aliás, nunca li nada do Nabokov que fosse apenas médio. Ele é sempre bom. E este livro é ótimo. Personagens palpáveis, história com reviravoltas surpreendentes, estilo elegante, etc… Eu o comprei há anos, mas, como a capa não me agradou, o coitado ficou na estante. Erro meu. Não se julga um livro pela capa, diz o ditado. E ele está certo. É um livraço.

Mas vamos ao que interessa, que é a nossa toreroteca. E o livro-prêmio de hoje (no qual ainda estou na metade) é “Dos sonhos e seus efeitos colaterais”, de Felipe Longhi Malheiro. Felipe foi jogar futebol na Nova Zelândia e conta aqui como esta aventura. Aliás, conta bem contado, com humor e sem auto-indulgência. Até hoje não tinha visto um livro em que um jogador explicasse tão a miúdo como é jogar no exterior (provavelmente porque poucos jogadores teriam condição de fazê-lo). Para melhorar, a editora maisQnada fez um bom trabalho de diagramação, dando um ar esperto ao livro, cheio de ilustrações, fotos coloridas, boxes e outras bossas. Para quem quiser o livro e não ganhar a toreroteca, o site da editora é este aqui: http://maisqnada.com.br/

 

E vamos à pergunta da toreroteca, que é a seguinte: Quais serão os placares de:

São Paulo x Corinthians

Fluminense x Vasco

Vitória x Cruzeiro

Meu voto é 2 x 1, 2 x 0 e 0 x 1.

Se ninguém acertar os três placares, ganha quem acertar primeiro os dois primeiros.


Reflexões quase sérias sobre a vida e a morte
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Torero

(No ''Velharias'' de hoje, um texto em que eu devia estar meio macambúzio)

Numa tarde em que não tinha nada que fazer, comecei a pensar na relação que o esporte tem com a nossa vida.

Como a maioria, achava que essa relação se restringia às aulas de educação física e àquele curioso encontro de barrigudos nos fins-de-semana, que os otimistas chamam de futebol.

Mas eu estava errado. Sim, eu estava. O esporte está presente em cada mísero momento de nossa existência.

Para começo de conversa, nascemos em decorrência de algo que lembra bastante um esporte. Claro que há controvérsias.

Os escritores de Sabrina, por exemplo, descreveriam tal cena assim: ''E então eles deitaram-se sobre lençóis de seda, tendo ao fundo o brilho gentil da lua prateada, vivendo intensamente cada segundo daquele instante em que não eram mais Conrad e Jane, mas um novo e único ser, que talvez pudesse ser chamado de…amor!''

Bem, não quero que pensem que sou grotesco, mas, olhadas as coisas com frieza, a situação parece-se mais com uma luta greco-romana.

Porém se há alguma dúvida nesse ponto, já no seguinte o paralelo é perfeito.

Feito o hole-in-one digno do mais genial golfista, nossa vida começa com nada mais, nada menos que uma corrida: a corrida dos espermatozóides, nossa primeira e mais importante competição, a qual, se não vencêssemos, não participaríamos de nenhuma outra.

Mal nascemos e já participamos de concursos de beleza com nossas mães nos comparando com outras crianças, depois vêm as disputas de inteligência para ver quem aprende a falar primeiro e por fim a ginástica rítmica, onde ganha quem consegue ficar de pé.

Passado esse tempo, começamos a nos interessar por outras competições.

Vêm os papagaios, as bolinhas de gude, os piões e, para as crianças mais modernas, os videogames.

Creio que continuaríamos brincando com joysticks ao longo de toda a nossa vida se pudéssemos, mas um dia nossos pais nos vêm dizer que aquilo pode fazer mal a vista e nos obrigam a praticar os esportes tradicionais.

Aí somos introduzidos ao mundo do futebol, do basquete, do judô, do vôlei, da ginástica olímpica e da natação.

Esse período mais ativo costuma prolongar-se dos 10 aos 18 anos, período que corresponde também ao da descoberta sexual, esse, sim, um esporte radical, cheio de perigos e emoções fortes.

Então vem a fase do trabalho e somos levados a exercitar outras habilidades esportivas.

A escalada social é mais difícil que alpinismo, sobreviver com um salário mínimo é uma corrida de obstáculos e a competitividade do mercado faz com que qualquer ringue de vale-tudo pareça mais um berçário.

E se você já enjoou de tanto esporte, lembre-se que ainda há o casamento, onde temos que ter a paciência de um enxadrista, a dissimulação de um jogador de pôquer, e o molejo de um corredor de marcha.

Assim corre nossa vã existência até que, finalmente, chegamos ao momento de passar para o outro lado do mistério.

É o fim de uma terrível queda de braço com a morte, luta que, no fim, sempre perdemos.

O que nos faz pensar de que adianta ter ganho aquela primeira corrida.


Zé Cabala e o homem de papel
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Torero

Quando cheguei à casa do ilustre mestre, ele estava no quintal disputando um gol a gol com Gulliver, seu assistente anão.

“Goool”, gritou Zé Cabala. “Onze a três!”

“Por cobertura não vale”, reclamou Gulliver.

Então os dois perceberam a minha presença. Zé Cabala pôs seu turbante e veio falar comigo.

“O que vai ser hoje, caro foliculário?”

“Aproveitando a eleição, eu gostaria de falar com o espírito de algum jogador que tivesse tido um problema político.”

“Certo, certo…”, falou o supino sábio enquanto dava uns tapas em sua túnica branca para tirar um pouco da grama.
Em seguida Zé Cabala respirou fundo e, ali mesmo no quintal, começou a girar feito a Mulher-Maravilha (para lembrar como era isso, clique na foto abaixo).

Alguns segundos depois, ainda meio tonto e apoiando-se na cabeça de Gulliver, ele disse:

“Matthias Sindelar, ao seu dispor.”

“Sindelar, o austríaco que era chamado de o Mozart do futebol?”

“Esse mesmo. Já ouviu falar de mim?”

“Um pouco. Você era o craque do time-maravilha, não era?”

“Sim, eu era do Wünderteam. O time que deveria ter vencido a Copa de 1934. Ah, como eu odeio os fascistas e os nazistas… Eles acabaram com a minha vida!”

“Calma, não vamos colocar os zagueiros na frente dos volantes. Comecemos pelo começo. Onde você nasceu?”

“Foi em 1903, numa cidadezinha chamada Kozlau, que era na Áustria mas hoje, por conta da mudança dos mapas, fica na República Tcheca. Mas só fiquei dois anos lá. Depois minha família se mudou para Viena, para um bairro do subúrbio chamado Favoriten.”

“Aí sua vida melhorou?”

“Por algum tempo, mas então veio a I Guerra Mundial e meu pai morreu em combate. Eu tinha 14 anos. Tive que começar a trabalhar como ajudante de mecânico para sustentar minha mãe e minhas três irmãs. A única coisa que me divertia era jogar futebol na rua com uma bola de feita de trapos. E essa foi minha sorte, porque um dia o pessoal do Hertha de Viena viu uma partida e me chamou para jogar lá. Fiquei no Hertha até os 21 anos.”

“E depois?”

“Depois, em 1924, fui para o Áustria Viena, o time de camisas violetas. Era um clube ligado à classe média judaica. E logo vieram os títulos. Em 1925 faturamos a Copa Austríaca e, em 1926, quando  acabou o amadorismo de vez, ganhamos a copa austríaca e o campeonato nacional. Depois ainda ganharíamos mais três copas nacionais e duas Copas Mitropas.”

“Mitropas? Nunca ouvi falar disso.”

“A Copa Mitropa era uma Copa dos times da Europa Central. Depois ela acabou se transformando na Copa dos Campeões.”

“Ah…, essa eu conheço.”

“Pois bem, vencemos a Mitropa em 1933 e 1936. Joguei no Áustria até 1939, quando aconteceu aquela tra…, bem você deve saber.”

“Já chegamos lá. Por enquanto, eu queria saber como era o seu estilo.”

“Eu era alto e magro, e tinha um estilo leve, elegante. Não era à toa que me chamavam de Der Papierene, que quer dizer ‘feito de papel’.”

“Você não devia ter um corpo muito atlético.”

“Não mesmo. E, para piorar, eu adorava fumar, beber e jogar baralho. Sem falar que me divertia um bocado com prostitutas nos bordéis e detestava treinar.”

“Mesmo com isso tudo ainda foi um grande jogador?”

“Talvez por isso tudo. Só joga bem quem está feliz.”

“E o tal do Wünderteam?”

“Olha, de 1930 a 1933, a seleção austríaca disputou 16 partidas. Ganhamos 13, empatamos duas e perdemos só uma, para a Inglaterra, lá. Foi um belo 4 a 3. Mas, em Viena, conseguimos a vingança: 2 a 1. E entre as vitórias tivemos goleadas de 4 x 0 na Franca, 5 x 0 na Alemanha, 6 x 1 na Bélgica 8 x 2 na Hungria e 8 x 1 na Suíça.”

“Então vocês eram os favoritos para vencer a Copa de 1934.”

“Sim. E começamos bem. Vencemos a França nas oitavas por 3 a 2, com um gol meu, e a Hungria na quartas por 2 a 1. Então, na semifinal, pegamos a Itália, que nós tínhamos vencido há pouco tempo, na própria Itália, por 2 a 1. Mas dessa vez foi diferente…”

“Ah, já sei… Esta paerte da história é famosa. A Copa de 1934 foi na Itália e o ditador Benito Mussolini fez de tudo para conseguir a Copa.”

“Pois é… Dizem que o juiz da nossa partida, o sueco Ivan Eklind, jantou com o Mussolini uns dias antes. E o cardápio deve ter sido ótimo, porque durante o jogo o Eklind fez de tudo. Pode perguntar para qualquer uma das sessenta mil almas que estavam no San Siro naquele dia. O Eklind não via uma falta a nosso favor, não marcou um pênalti claríssimo em cima de mim e, no fim do jogo, ele, sem querer, é claro, bateu a cabeça numa bola que vinha na minha direção na grande área.

“Puxa, que escândalo!”

“Agora me pergunte se ele foi punido?”

“Ele foi punido?”

“Não! Pelo contrário! Ganhou o privilégio de apitar a final! E aí a Itália ganhou na prorrogação.”

“Um absurdo!”

“Eu apanhei tanto naquele jogo que nem consegui participar da disputa do terceiro lugar. E aí perdemos para a Alemanha por 3 a 2. Aliás, esse jogo foi desastroso.Áustria e Alemanha tinham uniformes iguais, então nós tivemos que jogar com umas camisas do Nápoli emprestadas.”

“E a Copa seguinte?”

“Bem, passamos tranqüilos pela fase eliminatória. Mas, no dia 13 de março de 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha. Ou seja, sumimos do mapa. Dali em diante os jogadores austríacos teriam que jogar pela seleção da Alemanha. Veja que ironia, fomos roubados pelos fascistas e agora teríamos que servir aos nazistas.”

“E como foi sua carreira na seleção alemã?”

“Não foi. Eu me recusei a jogar. Sempre dizia que estava machucado. Aí a Gestapo começou a me investigar. E descobriu que eu era amigo de judeus e simpatizante dos comunistas.”

“Xi…”

“E isso não era a pior coisa na minha ficha. O pior aconteceu na partida para festejar a anexação. Havia no ar a sensação de que nós não poderíamos vencer. Poderia ser perigoso para a saúde, entende?”

“Sei, sei…”

“Bem, por minha sugestão, nós jogamos de camisas e meias vermelhas e calções brancos, as cores da bandeira da Áustria. E nós dominávamos a partida com facilidade. Mas, “estranhamente”, perdíamos todas as chances. Eu mesmo já tinha desperdiçado três oportunidades na cara do gol. Era uma humilhação, sabe? Mas fazer o quê? Desafiar os alemães?”

“Que situação difícil…”

“Ficamos assim, naquela lenga-lenga, até o meio do segundo tempo. Aí o público começou a vaiar. Ah, como aquela vaia doeu… E ela doeu porque estava certa. Nós não podíamos abaixar a cabeça! Tínhamos que desafiar os alemães. Então nós começamos a correr feito doidos e o jogo virou uma guerra. Logo depois, a bola sobrou para mim na meia lua. Eu dei um toque sutil, encobrindo o goleiro que estava adiantado. O público delirou! Ainda mais quando eu fui até a tribuna de honra onde estavam as autoridades nazistas, e dancei uns passos de Rheinland Pfalz, uma dança popular austríaca. Foi uma gargalhada geral em cima das autoridades alemãs. Depois disso, nós enchemos ainda mais de brio e fizemos dois a zero.”

“E os alemães deixaram isso ficar assim?”

“Uns meses depois, eu e minha namorada, uma judia italiana, fomos encontrados mortos no quarto dela.”

“Foi a Gestapo?”

Ele não me respondeu. Apenas ajeitou o turbante e disse:

“Mais de 40 mil pessoas foram ao meu enterro. Fui enterrado no mesmo cemitério onde estão Brahms, Schubert e Johann Strauss. Minha tumba fica perto da do Beethoven. Um lugar apropriado para o Mozart do futebol, rá, rá! A vida tem suas ironias. E a morte também.”