Futebol e cinema
Torero
Luiz Guilherme Piva*
Já li algumas vezes que, apesar de sua importância na cultura brasileira, o futebol não gerou nenhum filme de ficção que captasse e expressasse sua carga dramática, sua grandiosidade, sua plasticidade. Não por falta de filmes. Desde a época das chanchadas o tema marca presença em muitas produções nacionais. Em novelas de televisão, embora mais raramente, também.
Mas são sempre constrangedoras as cenas em que o jogo é representado. Beques patéticos levam dribles desmoralizantes, como bandidos coadjuvantes desfalecendo aos montes com pequenos socos do mocinho das lutas marciais. Chutes impossíveis descrevem parábolas sem tempo nem espaço, como tiros do justiceiro alcançando invisíveis inimigos tocaiados a quilômetros.
Diálogos completos e pausas longas para troca de olhares e sinais entre personagens no meio do jogo. Movimentos falsos. Goleiros molóides. Bicicletas perfeitas. O craque que sai enfileirando os onze adversários com rolinhos, chapéus, calcanhares, os zagueiros malvados dando socos e cuspes, o juiz safado roubando explicitamente. Talvez só o teatro infantil, aos olhos de adultos sem filhos que, sabe-se lá por quê, estejam na platéia, provoque impacto pior.
Deixo de lado a questão primeira: por que o cinema tem de tentar capturar e expressar o futebol na ficção? Acho que é uma falsa lacuna, talvez fruto de quem pensa que o cinema é a maior das artes, espécie de alma e espírito das épocas e humanidades. Eu não. Muito ao contrário.
Trato de dois outros aspectos que ajudariam a explicar a má qualidade da ficção cinematográfica sobre futebol. O primeiro, a insistência em filmar o futebol como se fosse um balé de virtuoses e malabaristas. O segundo, a impossibilidade de se reproduzir futebol se o jogo não for de verdade.
Não existe gol feio no cinema. Nem em novelas. Nem em comerciais. Na verdade, não existe nem gol bonito. Só gol maravilhoso. O herói dribla o time todo, dá lambreta, lençol, bicicleta, calcanhar, tudo numa só jogada, em geral a decisiva, no último minuto, definindo a partida ou o campeonato.
O futebol é visto como um show dos Harlem Globe Trotters. Ou como um mestre de kung Fu em acrobacias fantásticas.
E o principal: se o jogo não for a sério (e falo desde a pelada da praia ou de rua até a final da Copa do Mundo), os movimentos, lances, arranjos, acasos, sentimentos, posicionamentos, acertos, erros, e tudo o mais que caracteriza o jogo, são absoluta, explicita e vergonhosamente
falsos. Um teatrinho sem graça de quedas, trombadas, lentidões, espaços, tabelas e dribles que não existem. O futebol só existe jogado. Em cada participante há uma carga dramática que evolui sem roteiro, em tempo real, a cada segundo, cada lance, cada erro, cada acerto. E são vinte e dois em combinações impossíveis de prever e de reproduzir como ficção.
Nos documentários é que o futebol se dá melhor. Vidas de craques, histórias de conquistas clubísticas, memórias de copas. É que neste caso a câmera busca mostrar, ampliar, carregar o que há de drama em cada lance, cada personagem, cada trama. Com duas vantagens. Uma, o final da história é conhecido, então tudo assume condição de causalidade, seja linear ou cruzada ou aleatória, e isso dá riquezas e verossimilhanças ao suposto roteiro. A outra, a câmera lenta, que, em vez de fantasiar e inventar lances e reações que não existem, expõe, vivamente, o que há de mais real e cru em cada movimento, e mostra como o jogo é difícil, é duro, é fortuito e que só é possível de ser jogado verdadeiramente. Sem fingimento. Sem ensaio.
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Luiz Guilherme Piva é autor de Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A
miséria da economia e da política (Manole).
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Humberto
18/10/2010 15:31:57
Muito bom texto. De fato, a TV e o cinema maltratam o futebol com toda essa purpurina.
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Edilson
18/10/2010 14:20:03
"o juiz safado roubando explicitamente" - me lembrou um certo ninguem paulista que vive dizendo ser grande no grito.
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Geraldo
17/10/2010 23:44:19
O que o Luiz diz sobre filme de futebol é verdade também pra filme sobre basquete, basebol, futebol americano, natação, etc. Qualquer tentativa de reproduzir em filme ficcional a dramaticidade do esporte resulta em falso e meio patético. Esporte é uma arte, dramaturgia é outra, não há conversão possível.Aliás, isso é de certo modo verdade também para qualquer filme que tenta contar uma história real. Só que, nos filmes que se propõem a contar a história real de uma pessoa o que ocorre é ainda mais grave, porque o filme pode não ficar ruim. Se bem feito, pode ser emocionante, mas não será menos falso. Só irá recriar o personagem, fazer as pessoas confundirem o personagem histórico com o dramatúrgico, enfim, reescrever a história.A dramaturgia em geral e o cinema em particular é uma arte extraordinária, que faz melhor seu papel quando inventa histórias e nos transporta para mundo de fantasia.
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Torero
17/10/2010 23:41:02
Nesta segunda-feira será um dos temas do meu ABC.
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Torero
17/10/2010 23:40:18
Caprichado!
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Torero
17/10/2010 23:11:12
Acho que é mais fácil mentir com tiros que com gols.
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Torero
17/10/2010 23:10:28
Gosto muito de Wooddy Allen. Ainda não vi o filme, mas acho difícil não gostar.
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NISIO GOMES - BH.
17/10/2010 20:10:00
A impossibilidade de se reproduzir futebol se o jogo não for de verdade. GENIAL...
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Lino
17/10/2010 19:53:13
Na verdade, o problema é bem mais simples: direitos autorais. Não se pode citar sequer o nome de um craque num filme sem ter que pagar um monte de dinheiro para o sujeito (caso ainda ativo) ou para a família (caso já morto). Não se pode mostrar sequer um mísero lance verdadeiro de um jogo real, pois os 22 em campo tem que receber sua "parcela de royaltes". Enfim, não se pode nem citar o nome dos times, já que os ditos cujos vão processar o autor por nada terem recebido em troca da "contribuição" na fita. Mas o pior mesmo é o público do falso jogo: mesmo a Fiel mais enlouquecida parece um bando de atores mexicanos. Mas ainda aguardo um bom filme sobre futebol em que não tenha que aparecer nenhuma cena de jogo. Bastaria falar sobre os bastidores reais, sobre as brigas reais, enfim, sobre o entorno, não exatame sobre o "durante".
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Marcelo
17/10/2010 16:17:47
Torero, ontem assisti "You Will Meet a Tall Dark Stranger" no cinema. Filme escrito e realisado por Woody Allen. Gostei do filme, apesar de nao ser um grande fã do realisador. Bons atores e historias de personagens bem intercaladas, apesar do final ser meio sem fim. Minha esposa achou um filme previsivel. Gostaria de saber o que vc acha sobre o WA e, se ja viu, o que achou do filme.Abraço
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José Henrique Calazans
17/10/2010 15:23:26
Muito bom o texto. Me fez lembrar algumas coisas que você falou durante a palestra na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Mas a comparação com kung fu e tiroteios me deixou com uma curiosidade. A maioria dos filmes de ação é repleta de inverossimilhanças (como os bandidos que nunca acertam os tiros no mocinho ou os capangas que, em vez de cercarem o heroi e atacarem todos ao mesmo tempo, sempre atacam um de cada vez). No entanto, boa parte do público parece não se incomodar com essas "mentiras" e muitos chegam inclusive a dizer que elas é que dão graça ao filme. Por que não acontece o mesmo com os filmes sobre futebol? Abraços.
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Maurício Vedovato
17/10/2010 15:16:51
Oi, Torero.Espero que tudo esteja bem com você.Primeiro quero agradecer por textos como "O mar é salgado, o futebol é doce." Sou do interior de São Paulo, mas tô morando em Los Angeles (vim estudar Cinema e TV) e sinto muita falta do mardito futibor.Talvez você não se lembre, mas no ano passado você me deu um ingresso pra pré-estréia de "O contador de histórias". Belo filme.Por falar em cinema e futebol, você já assistiu a "O milagre de Berna" e a "The Damned United"? Os dois mostram o futebol de um jeito bem mais interessante do que aquele que a gente viu em "Vereda Tropical", a novela em que o Mário Gomes era o Luquinha, centroavante do Corinthians.Bom, só mais uma coisa, aqui vai o link pra um videoclipe da minha antiga banda, Saída-bangu, que a gente filmou uns anos atrás. Tem umas cenas de uma pelada. Espero que você goste:http://www.youtube.com/watch?v=9lsurgBW788Um abração.Maurício.
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Davi Kikuchi
17/10/2010 15:13:33
Para mim, os melhores filmes sobre futebol são os que o utilizam como pano de fundo, sem colocar o jogo em si como evento significativo. Aliás, uma coisa que eu acho bem bacana é que são muuuito raros filmes latinos ou europeus que não contenham pelo menos uma referência qualquer sobre futebol.
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Domingos Oliveira
17/10/2010 14:03:19
Olá pessoal,quando voces vão valorizar o futebol feminino?As meninas da Vila acabaram de conquistar o Bi da Libertadores e nada de comentários, afinal o futebol feminino não merece respeito e nem atenção?
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Henrique Guimarães Rezende
17/10/2010 12:50:15
Torero,Embora o foco do filme "Hooligans" seja mais sobre a torcida do west ham, os momentos que tem futebol são extremamente bem feitos. (pelo que parece eles tiraram trechos reais de partidas, mas não tenho certeza).
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Marcelo Ramos
17/10/2010 11:13:16
Post inteligentíssimo. Dá nervoso ver filmes, americanos principalmente, onde a falsidade de movimentos impera. Até cachorro (Bud) marca golaço driblando o time inteiro. Noutro filme, nas faltas os jogadores de um time se alinham todos atrás da bola só pra mocinha (moça, mesmo.... sexo feminino, jogando com um montão de marmanjo truculento, brucutu, e ela marca golaço dando dois toques numa falta, meu Deus...) marcar um golaço com o goleiro pulando em câmara lenta. Haja paciência. Tirando "Boleiros" (a cena do juiz falando pro cara não cobrar o pênalti é demais...), que considero um filme legal, assisti um filme inglês, que se passava na Escócia ou Irlanda, não me recordo agora, sobre dois times de uma pacata cidadezinha onde o acontecimento mais importante era uma partida de futebol anual. Houve uma aposta para ver quem ganhava um bar. Foi uma comédia bem legal, onde os atores e diretores conseguiram demonstrar o que é a paixão pelo futebol. O filme se chama, em português, "A Aposta" (The Match). As jogadas, no entanto, também são forçadas. Vale mais pelo enredo. Fora isso, dá-lhe documentários....Abraço,Marcelo Ramos.
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Lucas
17/10/2010 10:41:04
Muito boas as colocações! Eu tenho a mesma impressão sobre como é representado ("goleiros molóides" foi perfeito - nem o lado que a bola vai eles acertam na maioria das vezes) e sobre as causas (a falta de um confronto, movimentos já definidos). Muito boa a coluna e, a propósito, visito sempre o blog e devo dizer que é sempre garantia de entretenimento de altíssima qualidade. Apesar dessa coluna em si não ser do Torero, gostaria de elogiá-lo pela escolha do convidado e também por suas próprias colunas, que são de uma criatividade absurda.
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Fabiano P.
17/10/2010 10:19:28
Sou estudante de cinema e amante de futebol.Ótimo texto, disse tudo. Os filmes nacionais sobre futebol não conseguem captar a essência do esporte, eu acredito que embora tentem parecer realistas, não chegam perto disso, apesar do Brasil ser o "país do futebol" existe uma ignorância muito grande em relação ao esporte, visível nesses filmes. Será que algum desses diretores já jogou uma pelada, ou será que eles fizeram os filmes pensando na popularidade do esporte? Fica a dúvida.
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