Zé Cabala e Foguinho em volta da fogueira
Torero
Ontem à noite fui até a casa de Zé Cabala, o supremo correio das almas, o grande facebook dos espíritos.
Fui encontrá-lo em seu quintal. Ele e Gulliver, seu assistente anão, estavam em volta de uma fogueira. Sentei-me entre eles e perguntei:
“Estão fazendo algum ritual xamânico?”
“Acabou o gás e estamos assando salsichas”, respondeu Gulliver.
Só então reparei que havia ali uma grelha improvisada.
O mestre dos mestres retirou um espeto, mordeu a ponta de uma salsicha e disse:
“O que o traz aqui em plena noite de domingo, foliculário?”
“Não houve nenhum jogo interessante e preciso fazer um texto para amanhã de manhã.”
“Isso vai lhe custar uma taxa extra.”
“Quanto?”
“Um botijão de gás.”
“Feito.”
Então o supino sábio levantou-se e começou a dar voltas em torno da fogueira. Começou andando, depois acelerou, e por fim correu como um doido. Depois de algumas voltas, sentou-se esbaforido.
“Bah, tchê, nada como um exerciciozinho. Mas podiam ter me arranjado um corpo melhor.”
“Quem sois vós, oh, ser do além?”
“Foguinho.”
“Foguinho?”
“Bah, já vi que não entendes nada de história de futebol. Já ouviste falar em estilo gaúcho de jogar?”
“Claro.”
“Esse estilo sou eu. Eu que inventei esse negócio de força física, de aplicação tática, de marcação e jogo de conjunto.”
“O senhor? Por quê? Nasceu muito forte?”
“Pelo contrário. Nasci um ruivo bem franzino, daí o meu apelido. Então, no inverno de 1926, quando eu tinha 16 para 17 anos, caí doente. O médico disse que eu era muito fracote e, se continuasse jogando bola, poderia pegar uma tuberculose.”
“O que o senhor fez? Parou com os exercícios?”
“Pelo contrário. Resolvi fui remar no Guaíba e levantar peso para pegar corpo. Deu certo. Com 19 anos eu era um touro! Mas não um touro xucro. Um touro canhoto e com habilidade, que sabia driblar e chutar.”
“Lembra do seu jogo de estréia?”
“O primeiro a gente nunca esquece. Foi contra o Americano, que era o campeão de Porto Alegre. Ganhamos por quatro a dois.”
“E o primeiro campeonato?”
“Foi o da cidade, em 1930. A final foi contra o Cruzeiro. 3 a 1. E eu fiz o terceiro. Naquele tempo, quem ganhava o campeonato da cidade disputava o estadual contra os campeões das outras quatro regiões: Serra, Fronteira, Nordeste e Litoral. E lá fomos nós.”
“Ganharam?”
“Chegamos à decisão contra o Pelotas, do Litoral. O empate dava o título para eles. Mas de cara abrimos dois a zero. Só que o juiz deu dois pênaltis para o Pelotas e o jogo empatou. Depois fiz o terceiro, mas o juiz deu outro pênalti para eles. Aí não agüentei! Dei um bico na bola, fui expulso, teve tapa pra lá, tapa pra cá, o Grêmio saiu de campo e eu tive que fugir do estádio no carro de um dirigente. Mas o pior é que o juiz mandou o Pelotas cobrar o pênalti, mesmo sem adversário, e perdemos o título.”
“Pena, pena…”
“Mas nos vingamos nos dois anos seguintes. Fomos campeões invictos da cidade e do estado.”
“O seu salário deve ter aumentado.”
“Qual o quê? E eu lá era homem de jogar por dinheiro. Jogava por amor ao clube. Já ganhava bem como funcionário das lojas Renner, não precisava de dinheiro do futebol. Tanto que nem aceitei o convite para jogar no Vasco da Gama e no Botafogo.”
“Quantas vezes o senhor foi campeão?”
“Dez. Metropolitano em 30, 31, 32, 33, 35, 37, 38 e 39, e estadual em 31 e 32.”
“Parou de jogar com quantos anos?”
“Trinta e dois. Quase todo mundo parava por aí. Então fui cuidar da minha alfaiataria no centro da cidade. Mas um ano depois decidi voltar ao futebol. Só que como juiz. Apitei durante dez anos, e era tão correto que o Inter sempre queria que eu apitasse os grenais.”
“Isso sim, é prova de honestidade.”
“Em 53, o Cruzeiro me chamou para ser técnico. Hesitei mas topei. E gostei. De lá voltei para o meu Grêmio. Então pude pôr em prática várias coisas, como o esquema tático da Hungria, o esmero na preparação física e a força de conjunto. Em 55 perdemos o título por pouco, mas depois disso ganhamos cinco estaduais seguidos. Só saí em 1961 porque o diretor de futebol quis escalar o meu time. Aí peguei o boné. Se eu ficasse não seria um homem, seria um rato. Mas tudo bem. O importante é que, como jogador e depois como técnico, eu mudei o jeito da minha terra jogar. Hoje, quando falam em estilo gaúcho, sem saber estão falando de mim.”
PS: Quando estava saindo da casa de Zé Cabala, vi na prateleira um livro chamado “Os dez mais do Grêmio”, de Marcelo Ferla, e o marcador de página estava justamente na parte que contava a história de Foguinho. O mundo é cheio de coincidências.