Blog do Torero

Categoria : Sempre aos domingos

Futebol, kichute e galinhada
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Torero

Luiz Guilherme Piva

 

Laranja lima debaixo da árvore. Cedinho, a relva molha os pés e a bola. Sol de domingo na horizontal. Bostas de vaca aqui e ali. Secas, tiradas com chutes. Água de bica na mangueira do casebre, do qual saem cheiro de café e uma parte da família amontoada na bicicleta, cuja trilha demarca a linha do meio-campo. Cordão do calção desamarrado, meião, bate-bola pro aquecimento, mosquitinhos nas perebinhas do joelho, cruzamentos pro goleiro se alongar. 

O time da casa chega aos pedacinhos. Uns magrelos vindos do capinzal com kichute na mão. Uns grandes, de bicicleta, descalços. Um a cavalo. Dois de carroça. Mais uns dez de caminhonete.  Tem sarará, negão, branquelo, pardo, gordo, espigado, índio. A camisa velha, amarela e uma outra cor já apagada. Shorts, bermudas, calças dobradas até o joelho.

Já sem relva, sem bosta de vaca, há umas galinhas no canto onde acaba a grama. Dentro de um gol, uma cadela sonada. Carniça no córrego atrás do campo, com moscas, urubuzinhos, flores silvestres, arbustos.

Do casebre outra parte da família sai e senta no chão perto do campo. Uns meninos barrigudos às vezes entram pra brincar no meio do jogo com uma dente-de-leite furada. O pai atravessa o campo na bicicleta duas ou três vezes no leva e traz de alguma coisa – e pode parar no que seria o círculo central pra ficar assistindo a uma cobrança de córner ou a um pênalti. Se der rebote, ele poderá até deitar a bicicleta, jogar o chinelão de lado e dar um bico na bola de volta pro lugar de onde ela veio.

Velhos de chapéu na beirada picam fumo. Três mocinhas assanhadas dão jeito de passar pela grande área, roupinhas coloridas, rindo e cochichando. Um barulho de bambu partido com facão. Bois mugindo e vindo. Dá pra ouvir forte os que chutam de pés descalços, com as solas mais grossas que o kichute dos menores. O juiz fica sentado perto do casebre, conversa com a dona enquanto o marido ainda não volta. Se este desponta na trilha, ele levanta e apita infinitamente, correndo pra demarcar o local da falta.

 O sol agora é diagonal. Segundo tempo alto. Nada de gol. Um comecinho de briga. Os visitantes assistem – é entre eles daqui, que se entendam. No final, dois gols do time da casa: confusão na área, poeira, empurrões, um negão no primeiro, um menino sarará no segundo, põem pra dentro. Do casebre, dois rojões. A mãe entra em campo e abraça o moleque, suado, sardento, sorrindo, sebento. Depois, prende a barra do vestido numa ponta com as mãos e volta aos pulinhos. Os velhos do outro lado tomam pinga.

Fim do jogo. Os visitantes só de meião, sem camisa, sobem na carroceria. Levam mangas, milhos, mudos. Não são onze horas, mas no casebre já tem galinhada. As camisas do time, de listras amarelas e outra cor, nas bacias. Vão passar a tarde no arame, orgulhosas, bandeiras agitadas em festival. O sol imenso deixa tudo deserto, avermelhando os morros e as distâncias até a noitinha, só com o som da Rádio Globo chiando um Flamengo e Madureira.

Luiz Guilherme Piva publicou Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A miséria da economia e da política (Manole).


Sempre aos domingos: Serrano e Vitorino
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Torero

Texto de Jaime Belmiro*

Estava no bar da Preta, filial Campinas (tá ficando rica, a Preta), degustando um fenomenal pastel de queijo cujo óleo, que escorria pelas mãos, faria qualquer nutricionista embranquecer os cabelos.

De repente, vejo sentar-se a meu lado dois velhos amigos: Vitorino, o bugrino e Serrano, o pontepretano.

Era impossível não ouvir suas vozes tão acalorada era a discussão.

“O futebol de Campinas já era”, decretou Serrano, o pontepretano, já batendo na mesa.

“Vamos parar de besteira. Nem tudo está perdido”, acalenta Vitorino, o bugrino.

“Como não, ó rebaixado? Tá feliz, é?”

“É certo que não estou feliz com o resultado final dos times de Campinas, mas tivemos alguns bons momentos esse ano, Serrano.”

“Quá! Quá! Quá! Era só o que me faltava! Um perdedor conformado! Que bons momentos, cara-pálida?”

“Cara-pálida, não! Lembre-se que o índio aqui sou eu! Mas veja, o Bugre teve o artilheiro da competição, Roger, na maior parte do 1º turno”.

“Isso! Aí seu clube, num flash de brilhantismo (Serrano bate dois dedos na testa), vende o cara e o time fica seis, sete jogos sem marcar um mísero gol. Genial!”

“Acontece, fazer o quê? Olha a Ponte: depois da Copa emendou seis vitórias seguidas e chegou à vice-liderança! Que momento!”

“Cê tá louco?! Era ressaca da Copa. Ninguém queria saber muito de futebol depois que o Brasil perdeu e a Ponte só aproveitou… E nas últimas 10 rodadas? As únicas coisas que venceram foram as contas e o meu desodorante. Abre os olhos, Vitorino.”

“Func, Func. Vou é tapar o nariz. Ora, vislumbre pelo lado bom. Pelo menos, o time pôde já se preparar para o ano que vem… O Bugre, por exemplo, tem seu centenário em 2011.”

“Grande coisa! Estará nas 2ªs divisões do Paulista e do Brasileiro no ano do centenário. Que bela comemoração, hein?!”

“Bom, Serrano. Veja que será mais fácil o Bugrão conseguir mais um título, né?”

“Nem me fale em título, Vitorino. Nem me fale em título! Já falei que esta gozação conosco já cansou.”

“Ops, perdão, rsrs”. Vitorino, o bugrino, precisa falar de outro assunto/time. “E o Red Bull? Que achou?”

“Aquela equipe que venceu na Fórmula 1? Detesto esporte onde um entrega a vitória para o outro, Vitorino.”

Vitorino franze a testa, pensativo. “Bem, nosso futebol hoje não está muito diferente disso… Mas não, Serrano. Falo do time de futebol Red Bull de Campinas: Campeão Paulista da A3 este ano”.

“Sim, aquele que perdeu a Copa Paulista a três minutos do fim? Tá representando bem as derrotas do futebol campineiro”.

“Bom, Serrano. Quer saber? Vou embora! É muito chato discutir futebol com você. Tchau. Tenho que me preparar para a decisão de domingo.”

“Que decisão, Vitorino? Seu time já tá rebaixado! Não tem mais nada que fazer”

“É, mas pode definir o campeão brasileiro de 2010”.

“Que migalha… Por mim, quero que tudo se exploda”.

“Que que é isso? Você é muito desumano, Serrano”.

“Ahh, você é que é um eterno e inocente menino, Vitorino”.

 

 

Jaime Belmiro* é analista de sistemas e torcedor do Guarani, que vai decidir o Brasileirão 2010.


Sempre aos sábados: O torcedor não merece esse tratamento
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Torero

Texto de Anderson Santos

Torcedor na fila com sua cadeira de praia antes mesmo de divulgarem os locais de venda. Além disso, ingressos inflacionados por se tratar de um jogo esperado há 26 anos. Ataque cardíaco e morte na fila por causa de tanta espera – e o torcedor era vascaíno, estava fazendo um favor -, tantos outros que desmaiaram. Gente dando “carteirada”, passando por toda uma fila imensa e comprando muitos ingressos, enquanto os “normais” só podiam comprar um ou dois, quando o anunciado eram três.

Eu não escrevo há um bom tempo, mas já passei por situação de ficar em fila por horas e horas, vendo cambista fazendo a festa e a desorganização imperar. É um absurdo tamanha desorganização e não tem como ficar calado perante a isso.

Quando é que os dirigentes de futebol deste país colocarão em suas cabeças que o principal personagem é o torcedor? Que é ele que não abandona o time quando ele fica tanto tempo sem vencer o maior torneio de futebol do país, que aturou três quedas consecutivas na década de 1990?

E o principal, somos nós torcedores (e aqui falo no geral), que pagamos os ingressos, que compramos os produtos oficiais do clube, que compramos produtos dos patrocinadores dos times, que pagamos o pay-per-view de alguns jogos e assistimos as propagandas na TV aberta para comprar mais produtos ainda. Quando vão perceber a nossa importância, fundamental, para este esporte?

Um colega meu de trabalho costuma dizer que a torcida do CSA-AL é “safada”, pois o time sempre vai nos dar aquela falsa espectativa, vamos encher o Rei Pelé e depois assistiremos à derrota sepulcral. Acho que nós torcedores, de qualquer time, nós que vivemos nesse país, independentemente de gostar de futebol ou não, também podemos ser tachados disso. Apanhamos, sofremos, reclamamos na hora, mas nada de concreto fazemos.

Será que teremos que propor um boicote das torcidas nos estádios, um boicote à transmissão na televisão, um boicote a patrocinadores de times para podermos ser respeitados?


Não pedala, Robinho!
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Torero

Texto de Luiz Guilherme Piva

           Pedalou, tiro do time. Irrita. O cara não sabe driblar e fica lá, com os pulinhos prum lado e pro outro. Desde que começou essa história ninguém dribla mais. E no meu time só joga quem sabe driblar. Mas tem que ser drible mesmo, de enganar, de humilhar, de fazer a bola sumir e reaparecer em outro lugar. Se pedalar no treino, tá fora. Se pedalar no jogo, tiro do time e peço à diretoria pra dispensar.

            O futebol é o drible. Quando a molecada começa, o que diferencia quem joga e quem não joga é o controle, a embaixada, o drible. Os que não sabem vão pra defesa ou pro gol. Mas quem manda mesmo é quem sabe a firula, quem tem ginga, quem passa por três ou quatro, dá chapéu, elástico, faz que vai e volta – até fazer o gol ou perder a bola. Mas é ali que tá quem joga mesmo. Futebol, eu tô falando. Aí vêm esses caras agora com a pedalada. Francamente!

           Lembra do Joãosinho? Do Júlio César? Do Eduardo Rabo-de-vaca? Do Edu? Do Rivelino? Eram dribladores, ilusionistas. Pega os vídeos do Pelé e vê se tem lá alguma pedalada! Do Garrincha. Do Dener. Ou faz o drible direito, enfileira, humilha, mesmo que perca a bola e o gol lá na frente, ou dá o passe. Mas não pedala! Pelamordedeus, não pedala!

            Tem outra. Beque dando chutão fingindo que é lançamento. Ou dá de bico ou sai jogando ou lança de verdade. O cara ajeita o corpo, faz que olha alguém entrando em diagonal e bate bonito na bola. Ela sobe, sobe, sobe e cai na cabeça do adversário. Ou vai pra lateral. Dez vezes por jogo. E ninguém tira o cara. Eu tiro na hora. Fica uma semana treinando passe e lançamento. E banco, que é pra aprender. Se duvidar, vou eu lá e faço, ensino. Marco um xis a 40 metros e faço ela cair lá. Já joguei. Eles sabem disso.

            O negócio é que eu gosto de futebol. Vê esses aí: Parreira, Capelo, aquele escocês, o holandês, o Mourinho. Não gostam. Imagine eles andando de carro numa estrada. Passam perto de um lugarejo. Tem umas cabrinhas, um buteco, um cemiteriozinho e um campinho de terra com uns moleques jogando. Eu pergunto: eles param pra ver? Param? Nunca! Pois eu paro. Descobri muito craque desse jeito. Uns até progrediram, saíram aqui da várzea.

            Eu também tive chance. Fui chamado por uns times. Mas não. Aqui é que precisam de mim. Se não, acaba o futebol aqui. E esses meninos aí, quem é que vai cuidar?

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Luiz Guilherme Piva publicou Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A miséria da economia e da política (Manole).


Uma lição da UEFA
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Torero

Texto de Marcio R. Castro

 

Retirei os trechos abaixo diretamente do site da UEFA, no espaço que fala sobre a história da Liga dos Campeões:

 “A principal competição europeia de clubes foi lançada um mês após o primeiro congresso da UEFA, que teve lugar em Viena, a 2 de Março de 1955. Contudo, a então denominada Taça dos Campeões Europeus não surgiu de uma iniciativa da UEFA”.

 “Com a maioria dos membros fundadores da UEFA mais preocupada em criar uma competição europeia para selecções, o jornal francês L’Equipe e o seu editor, Gabriel Hanot, desenhavam uma competição continental destinada aos clubes”.

 “A competição idealizada pelo L’Equipe não obrigava a que os participantes fossem campeões nacionais, funcionava sim por convites aos clubes que geravam maior interesse junto dos adeptos. Representantes de 16 clubes foram convidados para uma reunião que teve lugar a 2 e 3 de Abril de 1955 e as regras do L’Equipe foram aprovadas por unanimidade”.

 É, é isso mesmo. O mais importante campeonato de clubes do mundo não surgiu de forma oficial, mas sim organizado por um jornal. No ano seguinte, a UEFA encampou a grande ideia de forma entusiasmada e passou a organizar o torneio.

 O Real Madrid, que venceu a disputa, é considerado o primeiro campeão europeu. Pela própria UEFA, aliás, que expõe no seu site toda essa história sem melindre nenhum. Mas afinal, por que a entidade “reconheceu” um torneio não-oficial, realizado fora de seu controle e alçada, como o primeiro campeonato europeu de clubes?

 Simplesmente porque a competição, independentemente de quem a organizou, teve essa representatividade, esse significado, essa dimensão. A UEFA percebeu isso e somente respeitou a história.

 No último dia 10, dirigentes de grandes clubes brasileiros se reuniram com Ricardo Teixeira para, mais uma vez, solicitar à CBF o reconhecimento da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedrosa como competições que consagravam o campeão brasileiro de futebol, equiparando os dois certames ao atual Campeonato Brasileiro. Afinal, ambos tiveram essa representatividade, esse significado e essa dimensão.

 O cartola os recebeu com disposição, posou para fotos e prometeu, outra vez, um estudo profundo sobre o tema. Avaliação que seria desnecessária, se a CBF fosse uma organização que se preocupasse em preservar e fazer justiça à história do nosso futebol. Aliás, à sua própria história, já que a Taça Brasil e o Robertão foram criados por ela, ainda como CBD, justamente para aclamar o campeão brasileiro de clubes. Infelizmente, pelo visto, quem nasce para CBF, nunca chegará a UEFA.

 P.S.: Há quase dois anos e meio, no “velho” Blog do Torero, foi publicado um texto meu (http://blogdotorero.blog.uol.com.br/arch2008-06-01_2008-06-30.html), que rebate com convicção, ainda que com a mesma dose de presunção, qualquer argumento contrário à equiparação das conquistas nacionais. Se você se interessar, confira.

 P.S. 2: Não é só à CBF que a UEFA dá uma lição de justiça e postura. A uma tal de FIFA também, que no alto de sua obsessão por controle, por inúmeras vezes já “não-reconheceu”, “reconheceu” e “não-reconheceu” novamente a Copa Rio e a Copa Intercontinental como Mundiais de Clubes. O que, de fato, as duas competições foram.


Sempre aos domingos: Pelé e a filosofia
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Torero

Luiz Guilherme Piva

 

A história da filosofia ocidental tem um grande divisor de águas, ocorrido em meados dos anos 1000. E o embate entre as duas correntes conforma muito das diferenças na formação das sociedades modernas. Isso porque não houve Pelé naquela época – cuja existência poderia ter suprimido as divergências entre os pensadores.

Uma das correntes, a mais antiga, pré-socrática, que deu base ao pensamento religioso, escolástico, metafísico e tomista, predominou na Europa até cerca de 1500, mas depois se concentrou na Península Ibérica e migrou para a América Central e do Sul, presidindo a formação intelectual e social das colônias hispânicas e portuguesas. Para ela, a verdade existe em si e cabe ao homem desvendá-la – sem nunca consegui-lo, visto que só vislumbramos arremedos e ilusões, sombras na caverna, manifestações parciais. A essência, plena e una, está guardada acima e fora do nosso alcance.

É óbvio que, se tivessem visto Pelé jogar, os próceres dessa doutrina a teriam renegado. A essência plena, a verdade maior do futebol estava ali, de carne e osso, correndo, chutando, driblando. Não eram sombras enganosas, não eram ilusões ou deformações da nossa parca apreensão intelectual.

A outra corrente, fortalecida a partir de 1500, mas sobretudo a partir do século XVIII, negou a metafísica e consolidou o império da razão e do experimentalismo (ou empirismo), dando base ao iluminismo, ao racionalismo e ao cientificismo. Para ela, que vingou nos países saxões e germânicos, principalmente, e migrou para a América do Norte, conformando parte de sua história, não existe a verdade essencial, só o mundo concreto: a verdade é construída pelo conhecimento.

É óbvio que, se tivessem visto Pelé jogar, também os fundadores dessa doutrina a abjurariam. Não poderia ser deste mundo o ser que corria, chutava e driblava como ele o fazia. Tratava-se, acreditariam, de simulacro ou sombra de algo maior, perfeito, ao qual jamais teríamos acesso por meio da razão.

Pode-se cogitar, então, que as duas correntes existiriam da mesma forma, apenas trocando de lugar os defensores de cada uma – e então tudo seguiria igual, com suas conseqüências culturais, sociais e políticas intactas.

Pode ser. Mas não creio. Acho que, se tivessem visto Pelé jogar, as duas acabariam convergindo para um leito comum – que restou para sempre, desde então, inexistente e inviável – que poderia ter ocupado o curso central do pensamento humano, no qual razão e metafísica ocupassem, harmoniosamente, seus respectivos espaços e dimensões. Não ocorreu.

Até hoje ciência e religião se digladiam, e alguns poucos ainda buscam o encaixe que as concilie. Mas em vão. A ausência de Pelé naqueles momentos inaugurais do pensamento moderno privou para sempre a humanidade e as sociedades da sua síntese fundamental.

E ainda hoje nos pegamos, cientistas materialistas de um lado, e metafísicos essencialistas de outro, ocupados com duelos e dúvidas em torno de questões menores como a verdade, o movimento, o tempo, a natureza e o ser.

Quando poderíamos já ter resolvido tais pendengas para nos dedicar ao que de fato é grandioso, que são as certezas e dúvidas que afloram na razão e no espírito ao ver e rever Pelé jogar.
Luiz Guilherme Piva é autor de Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A miséria da economia e da política (Manole)


Eu não vi Pelé
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Tiago de Souza

Todos temos devaneios (alguns dirão inclusive que se tratam de lembranças… vai saber?) e aspirações sonhadoras de termos vivido em alguma época, em algum lugar, ter vivenciado algum acontecimento histórico (e na época, provavelmente, nem ter notado que esse instante seria mesmo eternizado). Há quem sonhe em ter sido um cavaleiro templário, ou um navegador ibérico, ou ter ido à manifestações contra ditaduras, ter curtido um dia em Woodstock. Eu queria ter visto Pelé, e só.

Já perdi a conta das vezes em que assisti ao filme de Sua vida, que vi Seus lances na TV, que presenciei histórias contadas pelo meu pai (que são como lendas, algumas o são, inclusive), que me peguei desejando mais do que qualquer coisa ter ido a pelo menos um jogo do Santos de Pelé, do Brasil de Pelé, ou então apenas ter vivido essa época para depois contar aos filhos, netos, e quem mais se dispuser a ouvir, que “vi” Pelé jogar.

Não vi Pelé fazer mais de 1.200 gols, e assistir a que outros – pra mim eleitos divinamente –  também fizessem os seus mais 1.200 gols. Não vi Pelé – um negro, jovem, de país pobre – ser aplaudido em redutos arianos, em rincões bolivarianos, em palácios da Bretanha, em aldeias africanas.

Queria ter visto o Pelé numa das maiores demonstrações do poder social do esporte no – hoje quase hollywoodiano – dia em que parou uma guerra no Congo Belga. Queria ter visto Pelé no Pacaembú, no Morumbi, no Maracanã, no Azteca, na Rua Javari, no estádio da Esportiva de Guaratinguetá, ou em qualquer lugar que ele nunca pisou mais juram já tê-lo visto passar. Porque não duvido da Onipresença do Rei. Não duvido de nenhum feito relacionado a Pelé.

Não vi narradores se referirem a Pelé como “lá vem Ele…” quando seu pé, sua velocidade, sua habilidade, sua destreza, e a bola, se misturavam num desafio à física de qualquer época, e todos os ouvintes, muitos sem qualquer referência de imagem do Rei, saberem que Pelé estava vindo… e o gol muito provavelmente também.

Não vi Pelé para conseguir fazer poemas com seus feitos, para poder entender de fato o sentido de Armando Nogueira ao falar que “se Pelé não tivesse nascido homem, teria sido bola”. Queria ter visto Pelé.

Não me interessa que à época eu também teria visto alguns de meus mestres de samba cantando ao vivo por exemplo, teria presenciado momentos interessantes, de maior importância histórica do que qualquer feito de Pelé. Não, queria era ter visto Pelé subir e consubstanciar a expressão “matar no peito”, quando ele e bola se entendiam como nunca mais se verá.

Queria ter visto Pelé inclusive para quem sabe soltar a bravata de que ele não foi exatamente tudo isso, mas sempre sabendo que não passaria de pura vontade de ser do contra, ranzinza como sou.

Queria ter gritado “fica” no Maracanã farto em sua despedida de 1972 como meu pai jura ter ido e gritado (não me interessa se é real, eu acredito e é isso que interessa a ele, meu pai). Queria ter ido ao Maracanã no milésimo gol como mais de 500 mil pessoas já falaram também terem ido e igualmente não me interessa quem foi, apenas porque vivas eram à época e têm todo direito de falarem que foram, ponto.

Eu vi o Edson Arantes do Nascimento, mas queria ter visto Pelé. Não pelo motivo recorrentemente citado sobre a personalidade, índole, e outros sobre Edson. Mas porque Pelé era no campo, e só esse me interessa. O que ele é, foi e será fora dele, é problema dele, não meu. Mas o que ele fez nos estádios, é inspiração para o mundo, e isso eu queria ter visto.

Na minha geração – aqui coloco todos que não viram Pelé jogar, porque são eras diferentes na minha cabeça e que cada um faça a sua divisão – sempre ouço a insolência de que “hoje” Ele não teria sido isso, não teria feito aquilo, não driblaria assim… puro despeito de quem não viu Pelé.

Porque, no interior, a verdade é que todos esses queriam ter visto Pelé. Esse é meu devaneio de viagem ao tempo, esse é o desejo que jamais realizarei na vida, esse é o sonho de criança que tenho quando estou sozinho: queria ter visto Pelé!
Tiago de Souza é jornalista, são-paulino, e tem tristes 28 anos que não lhe permitiram ver Pelé.


Futebol e cinema
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Torero

Luiz Guilherme Piva*

Já li algumas vezes que, apesar de sua importância na cultura brasileira, o futebol não gerou nenhum filme de ficção que captasse e expressasse sua carga dramática, sua grandiosidade, sua plasticidade. Não por falta de filmes. Desde a época das chanchadas o tema marca presença em muitas produções nacionais. Em novelas de televisão, embora mais raramente, também.

Mas são sempre constrangedoras as cenas em que o jogo é representado. Beques patéticos levam dribles desmoralizantes, como bandidos coadjuvantes desfalecendo aos montes com pequenos socos do mocinho das lutas marciais. Chutes impossíveis descrevem parábolas sem tempo nem espaço, como tiros do justiceiro alcançando invisíveis inimigos tocaiados a quilômetros.

Diálogos completos e pausas longas para troca de olhares e sinais entre personagens no meio do jogo. Movimentos falsos. Goleiros molóides. Bicicletas perfeitas. O craque que sai enfileirando os onze adversários com rolinhos, chapéus, calcanhares, os zagueiros malvados dando socos e cuspes, o juiz safado roubando explicitamente. Talvez só o teatro infantil, aos olhos de adultos sem filhos que, sabe-se lá por quê, estejam na platéia, provoque impacto pior.

Deixo de lado a questão primeira: por que o cinema tem de tentar capturar e expressar o futebol na ficção? Acho que é uma falsa lacuna, talvez fruto de quem pensa que o cinema é a maior das artes, espécie de alma e espírito das épocas e humanidades. Eu não. Muito ao contrário.

Trato de dois outros aspectos que ajudariam a explicar a má qualidade da ficção cinematográfica sobre futebol. O primeiro, a insistência em filmar o futebol como se fosse um balé de virtuoses e malabaristas. O segundo, a impossibilidade de se reproduzir futebol se o jogo não for de verdade.

Não existe gol feio no cinema. Nem em novelas. Nem em comerciais. Na verdade, não existe nem gol bonito. Só gol maravilhoso. O herói dribla o time todo, dá lambreta, lençol, bicicleta, calcanhar, tudo numa só jogada, em geral a decisiva, no último minuto, definindo a partida ou o campeonato.

O futebol é visto como um show dos Harlem Globe Trotters. Ou como um mestre de kung Fu em acrobacias fantásticas.

E o principal: se o jogo não for a sério (e falo desde a pelada da praia ou de rua até a final da Copa do Mundo), os movimentos, lances, arranjos, acasos, sentimentos, posicionamentos, acertos, erros, e tudo o mais que caracteriza o jogo,  são absoluta, explicita e vergonhosamente
falsos. Um teatrinho sem graça de quedas, trombadas, lentidões, espaços, tabelas e dribles que não existem. O futebol só existe jogado. Em cada participante há uma carga dramática que evolui sem roteiro, em tempo real, a cada segundo, cada lance, cada erro, cada acerto. E são vinte e dois em combinações impossíveis de prever e de reproduzir como ficção.

Nos documentários é que o futebol se dá melhor. Vidas de craques, histórias de conquistas clubísticas, memórias de copas. É que neste caso a câmera busca mostrar, ampliar, carregar o que há de drama em cada lance, cada personagem, cada trama. Com duas vantagens. Uma, o final da história é conhecido, então tudo assume condição de causalidade, seja linear ou cruzada ou aleatória, e isso dá riquezas e verossimilhanças ao suposto roteiro. A outra, a câmera lenta, que, em vez de fantasiar e inventar lances e reações que não existem, expõe, vivamente, o que há de mais real e cru em cada movimento, e mostra como o jogo é difícil, é duro, é fortuito e que só é possível de ser jogado verdadeiramente. Sem fingimento. Sem ensaio.
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Luiz Guilherme Piva é autor de Ladrilhadores e semeadores (Editora 34) e A
miséria da economia e da política (Manole).


Nômade Futebol Clube
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  Por Márcio R. Castro

Primeiro foi o Grêmio Barueri. Após divergências com a prefeitura da cidade natal, que dava apoio financeiro ao clube, que é privado, além de destinar instalações públicas para uso de uma equipe profissional (fatos que por si só já eram escandalosos), os donos do clube-empresa negociaram “melhores condições” com outra prefeitura e se mudaram, se tornando o Grêmio Prudente. Mas a epopeia não acabou: já se fala em nova mudança, em busca de mais caraminguás.

Agora é a vez do Guaratinguetá. De acordo com seus investidores, os empresários da região não estão dando o suporte econômico que era esperado, diferentemente do que aconteceria em outras cidades. Portanto, malas prontas!

Times de futebol sem raízes, sem tradição, sem identidade, sem torcida, sem paixão, sem estádio e sem estrutura têm, obviamente, pouco futuro esportivo. Mas não é nem o caso de alertarmos os donos desses clubes-empresas de que eles estão dando tiros nos pés. Me parece que eles não estão nada preocupados com questões esportivas, mas apenas comerciais.

A Federação Paulista de Futebol já mostrou irritação com a situação, aumentando substancialmente o valor cobrado pela transferência, mas diz que nada mais pode fazer a respeito, já que a legislação esportiva permite mudanças de sede sem maiores implicações.

Uma alteração simples nessas regras bastaria para desestimular os nômades: cada transferência de sede, ou mesmo troca de nome, resultaria em rebaixamento automático do clube às divisões iniciais do futebol profissional. Assim, os “novos” times teriam que remar tudo novamente, fazendo com que seus comandantes pensassem melhor antes de procurar outros ares como quem troca de sapatos.

Não podemos negar que, pelo menos nos dois casos citados, os neo-dirigentes mostraram-se bem mais competentes do que a média nacional. Suas equipes, quase inexistentes há poucos anos, foram subindo de divisões seguidamente, tanto regionalmente quanto nacionalmente, até chegarem às séries B (Guaratinguetá) e A (Prudente) do Brasileirão. Virtude que mostra também a incompetência e o amadorismo reinantes em clubes tradicionais do nosso futebol.

Mas isso é só um adendo. Essa inversão da “ordem natural” (primeiro o negócio, depois o esporte) é inaceitável.  É ótimo que novas iniciativas sejam tomadas e que clubes com uma concepção mais moderna tentem seu lugar ao sol. Desde que, além das intenções mercantis, cultivem também outros valores, como respeito e apreço por torcedores e pelo próprio esporte.


Sempre aos domingos
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Torero

Texto: Luiz Guilherme Piva

Ilustração: André Bernardino