Blog do Torero

Categoria : Zé Cabala

Zé Cabala e o homem-aranha
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Torero

Quando cheguei ao ashram de Zé Cabala, um sobrado pintado de amarelo berrante no Jardim Lambretta, notei que a porta estava aberta e que havia uma certa gritaria lá dentro. Entrei o mais rápido que pude a fim de ajudar se houvesse algum problema.

Porém, qual não foi minha surpresa quando vi o sábio dos sábios em cima da mesa, gritando “Mate este monstro, mate este monstro!”, e Gulliver, seu assistente anão, correndo em torno da mesa enpunhando uma vassoura.

“Barata?”, perguntei.

“E você acha que eu teria medo de uma barata? É uma aranha. Uma aranha enorme, daquelas que atacam cidades em filme B.”

Foi então que vi um minúsculo exemplar do aracnídeo passando perto do meu pé e… cleque, pisei no bicho.

“Pronto, matei.”

“Sério? Você é um herói, caro foliculário! Só por causa disso hoje vou lhe fazer um desconto de 10%.”

“Quanta generosidade…”

“Quem você quer entrevistar?”

“Por uma grande coincidência, dessas que só acontecem nos textos de escritores de terceira, quero falar com o maior goleiro de todos os tempos.”

“O Aranha Negra? Detesto aranhas! Isso vai lhe custar o dobro.”

Eu aceitei, é claro.

Então Zé Cabala pôs-se a fazer alguns passos de dança russa e, depois de algum tempo, estendeu-me a mão e disse: “Muito prazer, Lev Yashin.”

“Pois bem, senhor Yashin, a primeira coisa que quero saber é o motivo do seu apelido.”

“É que eu sempre me vestia de preto e tinham braços longos.”

“Confesso que não vi nenhuma defesa sua…”

“É só olhar no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=47fTQnYMnTY.”

“Depois eu olho. Mas eu queria entender o que o senhor fazia de diferente.”

“Olha, bastante coisa. Por exemplo, eu fui um dos primeiros a socar a bola nos momentos de maior aperto junto da pequena área. Eu também camandava a defesa nos lances de bola parada, era rápido nas jogadas de contra-ataque, tinha elasticidade e muita coragem. Saía no pé do atacante como um raio. Aliás, outro apelido que eu tive foi raio negro. E também me chamaram de Pantera Negra por causa dos meus saltos.”

“O senhor sempre quis ser goleiro?”

“Sempre. Mas no começo queria ser goleiro de hóquei no gelo.”

“Sério?”

“Sério. Comecei no hóquei, no time da fábrica de ferramentas onde eu trabalhava. Depois, aos 14 anos, comecei a jogar futebol. E fiquei nos dois esportes por um bom tempo.”

“Quando se decidiu?”

“Em 1953. Eu já era reserva do Dínamo há 4 anos. Mas em 1953 aconteceram duas coisas: o goleiro titular, o grande Aleksey Khomich, se aposentou. E eu fui convocado para a seleção soviética de hóquei. Aí não teve jeito. Tive que escolher. E escolhi o futebol.”

“Ficou no Dínamo por toda a carreira?”

“Fiquei. De 1949 a 1971. Só parei com 42 anos. Vencemos o campeonato nacional cinco vezes, e três vezes a Copa da URSS. E eu fui o melhor jogador do campeonato 14 vezes.”

“E na seleção soviética?”

“Ganhamos as Olimpíadas de 1956 e a Eurocopa 1960. Sem falar que participei de quatro Copas do Mundo, de 1958 a 1970. Se bem que nesta última já era reserva.”

“O senhor lembra qual foi o seu grande jogo numa Copa?”

“Tem que escolher só um? Assim fica difícil. Bem, acho que a minha fama começou em 1958, num jogo contra a Áustria, quando eu defendi um pênalti. Aliás, há quem diga que defendi 150 pênaltis na minha carreira, mas deve ser exagero.”

“Vocês enfrentaram o Brasil nesta Copa, não é?”

Se meu russo não falha, aqui está escrito: Lev Yashin não era uma estrela. Nas suas horas de folga, gostava de jogar futebol com as crianças na rua.

“Para meu azar, fui o primeiro goleiro a enfrentar Pelé e Garrincha jogando juntos. E só tomei dois gols. Bem menos que França e Suécia, que nos jogos seguintes levariam cinco cada uma.”

“E como foi em 1962?”

“Fiz a pior partida da minha vida contra os colombianos. Ganhávamos de 4 a1, mas falhei duas vezes, numa delas até levei um gol olímpico, e eles acabaram empatando o jogo. Aí pegamos o Chile nas quartas e falhei de novo: pensava que o lance era em dois toques, mas o jogador chutou direto e marcou.”

“Um frango!”

“Na Rússia chamamos de borboleta. O pior é que perdemos por 2 a 1 e caímos fora da Copa. Ah, não é fácil ser goleiro…, não se pode falhar nunca. Até começaram a dizer que eu estava acabado para o futebol.”

“E estava?”

“Que nada! 1963 foi meu melhor ano. Tomei apenas 6 gols em 27 jogos. Fui tão bem que ganhei a Bola de Ouro como melhor jogador da Europa. Até hoje sou o único goleiro que recebeu este prêmio.”

“O senhor tinha algum segredo?”

“Bem, antes de cada partida, para acalmar os nervos, eu fumava um cigarrinho, e, para tonificar os músculos, tomava um copinho de vodka.”

“Fumava e bebia antes do jogo?!”

“Pois é. E adorei a caipirinha brasileira.”

“Como assim?”

“Eu era fã do futebol brasileiro e do goleiro Gilmar. Então, em 1965, consegui uma licença para visitar o Brasil. Fiquei no Rio de Janeiro. Passava as manhãs na praia e às tardes treinava os goleiros do Flamengo, só para manter a forma.”

“E o que fez quando se aposentou?”

Monumento a Yashin

“Passei a treinar equipes juvenis e a trabalhar como professor de educação física. Também participei das comissões técnicas do Dínamo e da seleção.”

“Uma boa aposentadoria.”

“Foi. Mas em 1984, com 55 anos, tive que amputar uma perna. Sabe lá o que é para um goleiro perder uma perna? A Aranha Negra ficou manca… Seis anos depois, passei para o lado de baixo do gramado, destino de todos nós, goleiros ou centroavantes. Contra o tempo não há defesa.”


 


Zé Cabala e o filé mignon uruguaio
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Torero

Desta vez, quando liguei para marcar hota com Zé Cabala, ele disse que não me atenderia em sua casa, mas numa churrascaria uruguaia em Higienópolis (por sinal, bem cara). Achei estranho, mas aceitei.

Quando cheguei ao restaurante, foi fácil de encontrá-lo pelo turbante.

“Bom dia, mestre”, eu disse.

“Grumpsh”, ele respondeu com aboca cheia de torradinhas.

“Posso perguntar por que o senhor escolheu este lugar?”

“Não fui eu, mas um espírito que quer contar-lhe sua história.”

“Claro! Podemos começar?”

“Ainda não. Para que se dê a incorporação, preciso de um estímulo.”

“Quer que eu cante um mantra.”

“Não. Acho melhor uma alcatra. E umas batatas para acompanhar.”

Quarenta minutos depois, quando o supremo sábio limpava a boca com o guardanapo, ele deu um pequeno arroto e disse: “Pronto, estoy aqui.”

“Quem sois vós, ó, espírito.”

“Muitos dizem que soy o maior jugador de la historia del Uruguai, o filé mignon do nosso fútbol. Pero yo digo que soy solamente el mejor del tiempo de amadorismo.”

“E o seu nome é…”

“José Piendibene.”

“Piendibene, Piendibene…, esse nome não me é estranho…”

“Ah, la ignorância… Yo soy uma espécie de Friedenreich uruguaio. Só que com mais títulos.”

“O senhor me desculpe.”

“Será difícil. Estou ofendido. Acho que vou embora.”

“Por favor, fique. O senhor não quer provar uma panqueca de doce de leite? É uma delícia.”

“Está bem, está bem…”

Vinte minutos depois, quando ele limpava a boca no guardanapo, disse de modo tranquilo:

“Bem, vou tentar diminuir sua ignorância contando um pouco da minha história. Nasci em 1890. Joguei por alguns times pequenos e aos 17 estreei no Peñarol, que naquela época ainda se chama CURCC.

“Curcc?”
 
“Isso, mas em maiúsculas. É a sigla de Central Uruguayan Railway Cricket Club. E encerrei minha carreira por lá, vinte anos depois. Sou o jogador que mais fez partidas pelo Peñarol. Foram 506 jogos, 253 gols e 6 campeonatos nacionais.”

“253 gols. Nada mal.”

“E eu jamais os comemorava. Achava um desrespeito com o adversário.”

“E como foi sua carreira na Celeste?”

“Bem, sou o segundo maior artilheiro da seleção uruguaia. E quem mais fez gols contra a Argentina, o que é uma grande honra.”

“E contra o Brasil?”

“Fiz minha melhor partida. Ganhamos de vocês por 6 a 0 na Copa América de 1920. Aliás, fui eleito o melhor jogador da competição e foi a terceira que ganhei.”

“Terceira?”

“Sim. Também ganhamos a de 1917 e a primeira, em 1916. E quem fez o primeiro gol da história da Copa América?”

“O senhor?”

“Cierto! Você não é tão tolo quanto parece.”

“E qual era sua posição?”

Ele parou de assoprar o cafezinho que tinha acabado de chegar e respondeu:

“Centrodelantero. Mas tinha muita técnica e voltava para armar o jogo.”

“O senhor devia ser muito bom mesmo.”

“Bem, sem querer me gabar, sete anos depois que me aposentei, um famoso jornalista uruguaio me chamou de ‘Señor de la Cortada, Rey del Pase, Monarca del Cabezazo, Emperador de la Gambeta, Sultán del Dribbling, Soberano del Taquito.’”

“Puxa! E qual destes era seu apelido?”

“Apellido? Mi apellido era Piendibene.”

“Apelido em português quer dizer apodo. Algo como Pelé, Zico, Didi, Vavá, Divino, Reizinho do Parque…”

“Usted no sabe no como me llamaban?”, disse ele levantando-se indignado. “Pues me llamaban de Maestro!”

E, depois de dizer isso, atirou-me o guardanapo na cara foi embora batendo os pés.

Eu, é claro, paguei a conta sozinho.


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