O duelo que foi sem ter sido
Torero
Por Marcelo Lyra
Pois é, o esperado duelo ao por do Sol na São Silvestre com meu arqui rival José Roberto Torero acabou não ocorrendo. Primeiro porque estava nublado, mas principalmente pelo motivo mais tosco: apesar de estarmos os dois na mesma rua, armados e prontos para disparar (literalmente), simplesmente nos desencontramos na largada. Ele precisou chegar duas horas antes para encontrar a equipe de filmagens da nossa amiga Lina, que fazia um documentário. Como durmo e acordo tarde, às três horas, enquanto ele era equipado com câmera e microfone, eu equipava meu estômago com o almoço.
Combinamos, via equipe do documentário, de nos encontrar na esquina da Paulista com a rua Pamplona mas foi uma tentativa de amadores. Qualquer um que já correu a São Silvestre sabe que haveria tamanha aglomeração que seria impossível se deslocar, quanto mais achar alguém. Eu bem que tentei, mas a cada passo era preciso empurrar homens aranhas, papais noéis, um sósia do Tiririca (super aplaudido), vários chapolins, chaves, estátuas vivas, um Ayrton Senna e até um homem-touro, com chifres de verdade. Esse eu não ia querer atrás de mim. Vai que ele tropeça? E ele ainda dizia para todos que olhavam e riam: “Tá rindo do chifre? Você ainda vai ter um!”
Em meio àquela massa suada (muitos tinham feito aquecimento) que se comprimia a uma média de 15 pessoas por metro quadrado, não havia chances de encontrar meu inimigo. Nosso desafio tinha ido por água abaixo. Depois da corrida, descobrimos que o José Roberto estava há uns cem metros (ou duas mil pessoas) na minha frente. Era só gritar.
Conformado, tentava chegar um pouco mais a frente, já que cada pessoa que ultrapassasse agora seria um a menos para ultrapassar durante a prova. E cada centímetro adiante significava umas dez pessoas a menos.
A corrida estava prestes a começar e eu havia estabelecido três metas:
1) Não parar de correr. Andar seria uma derrota.
2) Fazer a prova em menos de 90 minutos.
3) Chegar à frente do José Roberto.
Ok, ok, chegar à frente do José Roberto era o mais importante. Ao todo eram 21 mil corredores e eu não me importaria em ser o 20.999, desde que o sacana fosse o 21 mil. Tudo para não ler o texto sacana no blog. Após a tentativa frustrada de encontrar meu arqui rival, ainda estabeleci uma quarta meta que era não ser ultrapassado por nenhum corredor com fantasia ridícula.
Em meio à multidão, você só percebe que foi dada a largada porque começa uma gritaria. Dificilmente consegue-se correr antes de passar pelo tapete eletrônico que ativa o chip que cada corredor leva consigo. Dois minutos de passar pelo tal tapete (e meu tempo começar a valer), eu já estava correndo, ao contrário da lenda que corre (com pernas curtas), segundo a qual, na avenida Paulista, só se consegue andar.
A emoção é indescritível. Comecei a rir sozinho de alegria. Finalmente eu estava ali, correndo a mesma prova que o Marílson e alguns dos melhores quenianos do mundo. Ok, eles estavam bem lá na frente, mas quem se importa? Sei exatamente o que deve ter sentido o Bruno Senna ao largar no último lugar na sua primeira corrida de Fórmula 1.
Como a rua Consolação é só descida, continuei sorrindo pelos três primeiros quilômetros. Mas bastou pegar a subida da rampa de acesso do minhocão, lá pelo km 3 para cair a ficha de que a coisa não era brinquedo e, se eu continuasse sorrindo, não ia chegar nem na metade. Comecei a dosar as energias e respirar como qualquer corredor amador que se preze. Ou seja, diante do Minhocão, vi que a coisa era séria.
Passou o Minhocão, chegou o belo e descuidado centro velho de São Paulo.
Alguma coisa aconteceu no meu coração quando eu cruzei a Ipiranga e a avenida São João. Faltou ar, parecia ser um princípio de enfarte. Mas tomei um pouco da água que trazia comigo e fui em frente. Estava decidido a cruzar a linha de chegada, nem que fosse no helicóptero do Incor.
Lá pelo km 10 eu já havia ultrapassado um sem número (bom, pensando bem, todos tinham um número no peito) de fantasias, incluindo um romano, uma estátua viva e um maratonista com coroa de louros levando o que deveria ser uma tocha olímpica. Foi quando vi pouco a frente o Ayrton Senna. O sujeito estava de macacão, capacete e tudo. Lembrei da minha quarta meta, engatei a quinta marcha e fui em seu encalço. Ultrapassei-o dois minutos depois e juro que ouvi a narração do Galvão Bueno “Marrrcelo Lyra ultrapaaaaaaassa Ayrton!!!!” Ok, ok, o sujeito estava de macacão e capacete, devia estar com um calor danado. Mas que eu passei, passei. E deixei O Senna para trás.
O mundo da fantasia daria o troco a seguir, pois um sujeito fantasiado de Chapolin (com macacão e antenas), me ultrapassou. Acho que ainda ouvi um “Me sigam os bons!” Indignado, engatei a sexta marcha e fui em seu encalço. Acompanhei-o por uns dois minutos, mas não agüentei seu ritmo. O Chapolin era realmente bom.
Algumas pessoas ficavam nas portas das suas casas com mangueiras. Era só abrir os braços como que pedindo e te davam um providencial e refrescante jato d’água. Obrigado a todos!
A essa altura já estava lá pelo km 10 ou 11. Quando passei pelo antigo Mappin, lembrei do antigo slogan “Mappin, venha correndo Mappin”. Pois é, vim correndo, Mappin. Depois veio o Viaduto do Chá. O que eu não daria por um bom chá mate e uma poltrona! Ao fundo, vi aquele que é um dos meus cartões postais preferido da cidade, o viaduto Santa Ifigênia, que o Adoniram Barbosa imortalizou em música. Rendi minhas homenagens: juntei o que restava de fôlego para cantarolar um trechinho “Venha ver Eugênia… Como ficou bonito… O viaduto Sta Ifigênia”.
Quando chegou o km 12, vi o início da subida da Brigadeiro. Meus pés e os joelhos doíam, assim como as batatas da perna. Sinceramente, achei que ia desistir. Meu maior inimigo era eu mesmo. Estava com o celular e resolvi sacar e ligar a câmera filmadora dele, para registrar o momento da desistência. Pensei “Quem bom que o José Roberto não está por perto para assistir minha derrota”. Mal eu sabia que, pelas nossas contas posteriores, eu devia estar passando por ele naquele exato momento. Mas estava tão exausto que não conseguiria ver nem a Gisele Bunchen de biquíni. O link para as imagens do meu celular no Youtube é esse aqui http://www.youtube.com/watch?v=sqQ9LEcu12M
Um cara passou por mim me sacaneando, bem no momento em que eu dizia para a câmera “Até agora não parei, mas acho que vou desistir”. Ele ouviu e disse: “Parou sim que eu vi!” Isso me deu um ânimo extra: “Agora é que eu não desisto”. Até consegui conversar com o cara, que estava na sua segunda S. Silvestre, tinha 37 anos e se chamava Márcio Preti, veterano corredor de diversas corridas de 10km.
Quando vi, já estava quase no final da subida. “Vai dar!”. Aguentei firme, mais gente começou a me apoiar. Umas meninas lindas começaram a gritar meu nome e achei que era miragem. Depois lembrei que abaixo do número do peito tinha meu nome, elas apenas leram. Foi um belo estímulo.
Quando cheguei na avenida Paulista, do nada parecia que eu voava! Corria leve e veloz. Achei até que tinha morrido e minha alma tinha abandonado o corpo. Na verdade, descobri uma coisa que ninguém nunca tinha me falado sobre a São Silvestre: quando a subida acaba e você começa a correr no plano, a sensação é que estamos uns vinte quilos mais leves. Comecei a ir mais rápido e vi a reta de chegada. “Vai dar! Vou conseguir!” Voltei a rir sozinho. Cruzei a linha de chegada inteiro e sorrindo, uma emoção incrível! Ainda não acredito.
Dois metros adiante um cara tinha desmaiado e era socorrido por paramédicos e alguns atletas. Olhei preocupado, pois poderia ser o José Roberto. Alívio, não era. Alívio número dois, notei que, na maca, ele tomava água e parecia estar bem, só exausto.
Completei a prova em exatos 88 minutos, ou seja, se o Marílson tivesse dado duas voltas, não me alcançaria. Achei que não fui nada mal, afinal ele treina todo dia e recebe para isso. De quebra, dez minutos à frente do arqui rival. Cumpri todas as minhas metas exceto o maldito Chapolin Colorado. Ano que vem ele não me escapa!