Blog do Torero

Categoria : Velharias

Por que Ronaldo é tão amado?
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Torero

(republico hoje um texto feito depois da volta de Ronaldo ao Corinthians, que tenta explicar o motivo de ele ser um ídolo tão querido)
Acho que a resposta é: porque ele encarna vários personagens dos quais gostamos.

Para começar, teve uma infância pobre, o que de cara provoca uma certa empatia. Nada como o sofrimento infantil para gerar carinho pelo personagem.

Mas ele não foi só o menino pobre. Foi também garoto prodígio. E todos nós adoramos garotos prodígios, como Pelé, Mickey Rooney, Robinho, Macaulay Culkin, Zico, Neymar e Robin (o do Batman). Eles unem a genialidade à singeleza infantil. E Ronaldo, campeão do mundo aos 17 anos, conseguiu ser um menino prodígio. Ele tornou-se um caçulinha pé-quente, uma espécie de mascote da seleção. Aliás, com os eternos dentões, ele consegue manter um tanto desta aura até hoje.

Ronaldo também se encaixa no “adolescente-que-apronta”, tipo que não exatamente admiramos, mas com o qual temos uma grande identificação. O fato de ele fumar, beber, ir a boates, ser pego com travestis etc torna-o meio trapalhão, tira-o do Olimpo e faz com que ele pareça mais humano.

Ele ainda pode ser classificado no arquétipo de “comedor”, de “don juan”. Não só pelas várias mulheres que passaram por sua biografia, mas principalmente pelos seus dois casamentos. Primeiro, foi Milene, uma menina bonita, simpática e que jogava futebol, o sonho de vários marmanjos. E depois houve a história com Daniella Cicarelli, na época, o maior símbolo sexual do país. Ou seja, muitos homens tiveram identificação projetiva com Ronaldo.

Outra faceta importante é a de “homem de sucesso”. Ele jogou pelos dois maiores times da Espanha e pelos dois maiores de Milão. Ganhou três vezes o título de melhor do mundo, foi artilheiro da Copa de 2002, é o maior artilheiro da história das Copas… Ao lado disso, teve um ataque de sei-lá-o-quê na final de 1998. Ou seja, Ronaldo consegue temperar um lado gauche com um lado vitorioso.

Creio que uma de suas variantes mais importantes é a do “ressuscitado”. Todos adoramos personagens que parecem estar liquidados e acabam dando a volta por cima. Metaforicamente, é como se eles vencessem a morte. E Ronaldo já teve três graves contusões. Recuperar-se uma vez já seria espantoso. Duas vezes, um milagre. Mas ele está em sua terceira recuperação. Não é à toa que o apelidaram de Highlander.

Quando realmente morrer, o médico-legista fará exames extras, porque o cara parece imortal. Mas o mais importante é que ele se encaixa no arquétipo de herói. Principalmente por conta da Copa-2002. Aquele foi o grande momento de sua carreira. Ele ergueu-se das cinzas e fez oito gols em sete jogos.

Sem falar que marcou os dois gols na final contra a Alemanha.

Simbolicamente, é como se a Copa tivesse sido vencida por ele, assim como Romário teria conquistado a de 94, Pelé a de 58 e Garrincha, a de 62.

Em resumo, acho que Ronaldo consegue se encaixar em vários personagens que admiramos: menino pobre, garoto prodígio, adolescente problemático, jovem conquistador, azarado, vencedor, ressuscitado e herói, e assim une a perfeição e o fracasso, sendo ao mesmo tempo extraordinário e comum. E, além disso tudo, o cara joga muito.

 


Afaste-se das feijoadas
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Torero

(No Velharias de hoje, um textinho sobre coisas que nos deixam louco)

Luana Piovani, Ana Paula Arósio, feijoada e futebol podem ser os quatro itens mais desejados pelos brasileiros, mas sua combinação pode ser triste, caro leitor. Leia estas linhas e entenderá o porquê.

Tudo começou num boteco onde eu comia uns bolinhos de bacalhau com Luana e Ana Paula. Obviamente, eu estava sem jeito, sem saber onde pôr as mãos -ou talvez soubesse, mas não pudesse. De qualquer forma, o fato é que eu não sabia o que dizer para as musas da telefonia.

Como a única coisa da qual entendo um pouco é futebol, resolvi contar alguns casos lendários da história de nosso esporte.

Para começar, disse que uma vez o Nacional de Manaus teve que perder um jogo para se classificar por renda.

“Por renda?”, perguntou Luana.

“Sim”, eu respondi, “e o Grêmio já teve que perder para continuar num torneio”.

Ela deu uma estriptosa gargalhada. “Você me faz rir! Conte outra!”, pediu.

Obedeci. Falei que em 1987 nós tivemos dois Campeonatos Brasileiros, um vencido pelo Flamengo e outro pelo Sport. E, até hoje, os dois clubes se proclamam donos do mesmo título.

Ana Paula se contorcia de tanto rir. “Você é um gozador!”, ela dizia.

Eu queria ver aqueles dentes de novo, então contei que certa vez o São Paulo teve que jogar no mesmo dia, local e horário por dois campeonatos diferentes.

Como a façanha era impossível, o tricolor antecipou um dos jogos por duas horas e realizou uma rodada dupla.

“Mais, mais!”, implorou Luana.

Seu desejo era uma ordem. Então falei do Fluminense, o único clube no mundo rebaixado da primeira para a segunda divisão por dois anos seguidos.

“Não pare!”, suplicou Ana, enxugando uma lágrima.

Não parei. Disse que o Vasco da Gama conquistou um título por W.O. e que uma vez um de seus jogadores, o atacante Edmundo, foi expulso para poder jogar a próxima partida.

“Nunca ouvi nada mais engraçado”, bradou Luana enquanto dava tapas na mesa.

Empolgado com a idéia de que a noite poderia acabar, digamos, numa linha cruzada, continuei. “”E vocês não sabem da melhor: o Brasil vai abrigar um Campeonato Mundial de Clubes no ano 2000, e os nossos representantes são os campeões da Libertadores e do Brasileiro de 98.”

Elas riram tanto que eu pude ver suas belas amígdalas.

Então, ambas se inclinaram para beijar-me o rosto. Achei o toque de suas peles um tanto áspero, e, quando olhei-as novamente, Luana tinha se transformado em Ricardo Teixeira, e Ana Paula, em Eurico Miranda.

Dei um grito de horror e acordei suando.

Então, lembrei que antes de dormir tinha comido uma feijoada gigantesca. Aquele prato certamente fora o responsável por esse pesadelo que combina os quatro sonhos brasileiros.

Por isso, leitor, é que lhe digo: Afaste-se das feijoadas!


Eu, São Silvestre e o Super-Homem
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Torero

(Eis cá a continuação do texto de ontem)

    

Motivação é o segredo.

Em 1998 corri a São Silvestre e não fiquei exatamente entre os primeiros. Fui o 7.563º a cruzar a linha de chegada. E o pior: no final fui ultrapassado por um corredor que usava óculos e uma esdrúxula roupa de Super-Homem.

Para esta prova de 1999 prometi a mim mesmo que melhoraria minha posição e que venceria o Homem de Aço. Motivação é o segredo.

Preparei-me com esmero.Troquei a Fanta Uva por Gatorade, o toucinho matinal por Fibrax, a feijoada de sábado por alfaces, chicórias e agriões. Nadei diariamente, tive aulas de alongamento, musculação e axé music.

Quando o dia chegou, estava pronto para a vingança, para vencer o filho de Kripton.

Cheguei à Paulista faltando meia hora para a prova. O tempo estava quente, abafado e úmido, mas nada disso importava. Alonguei os músculos, amarrei os tênis com laços duplos e rezei uma ave-maria. De repente, lembrei-me que tinha esquecido de me hidratar. Corri então para o bar mais próximo e tomei apressadamente dois litros de água mineral.

Voltei à pista e quem vi? Sim, ele, o invencível, o insuperável, o invulnerável Super-Homem. Ao me ver, o miserável ajeitou seus óculos e, lançando um risinho de superioridade, entregou-me o indefectível folheto com a frase: “”Quer emagrecer? Fale comigo”.

A prova começou e disparei como uma gazela que foge do fogo, como um tigre atrás da presa, como um cavalo no cio que procura sua fêmea. Passei quatro Elvis Presleys, três Ayrtons Sennas, dois Lampiões e cinco Carmens Mirandas.

Logo me juntei aos profissionais e fugi daqueles barrigudos decrépitos e suas fantasias ridículas. Aliás, meu uniforme para este ano foi uma camiseta roxa, short laranja, boné violeta e tênis fosforescente verde-limão. Ou, se preferirem, verde-kriptonita.

Tudo corria bem até que, ao chegar à avenida Rudge, minha bexiga falou: “Aqueles dois litros foram demais!”

Meu cérebro tentou contemporizar: “Você não pode aguentar até o fim da corrida?”

Mas a bexiga, impaciente, respondeu: “Você está brincando? Eu vou explodir!”

Então tive que sair da pista e ir atrás de uma rua deserta, o que não é fácil em dia de São Silvestre. Até que achei uma, mas demorei para encontrar o caminho de volta.

Depois de perder sei lá quanto tempo zanzando, cheguei à Brigadeiro Luís Antônio. As pessoas me aplaudiam e pensei que ainda estava bem colocado, mas então um gago gritou: “”Vo-você é o ú-ú-último, mas tenha f-f-fé!””

Último!

Dei um pique extraordinário e cheguei à Paulista ainda a tempo de avistar um corredor: justamente o Super-Homem de óculos.

Corri como um político que quer pegar o vôo de Brasília para a sua cidade natal numa quinta de manhã, mas percebi que não ia dar. Então tirei um de meus tênis verde-kriptonita e arremessei-o contra a cabeça do Homem de Aço, que caiu desmaiado. Não, ele não era invulnerável.

Cruzei a faixa e recebi uma medalha de participação. Para comemorar, comprei uma Sidra Cereser sabor pêssego e a estourei como se fosse um Paul Tergat. Foi então que olhei para trás e vi o tal Super-Homem correndo em minha direção. Saí dali o mais rápido que pude. Ele só parou de me seguir depois de quarenta minutos e quinze quilômetros.

Acho que este ano atiro o tênis na cabeça dele logo no começo da corrida. Motivação é o segredo.


O dia em que desafiei o homem de aço
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Torero

(No Velharias de hoje publico um textinho de 1999 sobre a São Silvestre)

Por um ano eu mantive este segredo. Um ano! Mas agora basta, é hora de contá-lo: Em 1998 eu participei da São Silvestre!

A decisão, como a maioria das decisões imbecis, surgiu num instante de euforia.

Era Natal. Depois de beber um pouco de vinho, de uísque, de cerveja, de vodca e de caipirinha, bradei para meus amigos: “Hic! Ezse ano eu vou correr a Zom Zuvestre!”

Burrice feita, só me restava fazer uma boa preparação para a prova. No dia 26 acordei cedo e fiz dez flexões, no 27 fiz 15 abdominais, no 28 corri em volta do meu quarteirão, no 29 comprei um short roxo, uma camiseta laranja e um tênis verde-limão, e no 30 descansei, que ninguém é de ferro.

No dia da prova almocei um gigantesco prato de lasanha a fim de fazer uma boa reserva de carboidratos.

Então vesti meu colorido uniforme e fui para a largada. Admito que estava otimista. Ainda mais depois de observar os oponentes que estavam por ali: um homem carregando um cartaz onde se lia “”Mamãe, eu tô na Globo”, outro com uma gigantesca mão de borracha, e um outro com o capacete do Senna.

Mas quem mais me chamou a atenção foi um Super-Homem gordinho e de óculos que se alongava ao meu lado. Não sei se foi o seu risinho confiado ou o fato de ele ter me entregue um folheto com a frase “Quer emagrecer? Fale comigo”. Mas a verdade é que antipatizei com ele e assumi o desafio de derrotá-lo.

Mal foi dada a saída e tomei a dianteira do meu exótico grupo. Naqueles primeiros metros eu estava lépido e fagueiro.

Cheguei a pensar que poderia alcançar o pelotão de elite. Talvez, com sorte, conseguisse até um podiunzinho.

Porém, logo depois da curva no final da rua da Consolação meu baço começava a doer. Mais alguns metros e o coração disparava, mais alguns centímetros e o pulmão arfava, mais alguns milímetros e a língua não cabia mais na boca.

Eu estava determinado a não desistir, mas como minhas pernas estavam decididas a não continuar, chegamos a um acordo: eu pegaria um atalho.

Dobrei a primeira alça do Minhocão e fui andando até o centro da cidade.

Parei num bar da rua Aurora e pedi uma coxinha e uma caracu com ovo enquanto via a corrida pela tevê.

Conta paga, segui até a Praça Ramos de Azevedo, esperei os quenianos passarem para não dar na vista e entrei logo atrás. De repente, eu era o melhor brasileiro da prova.

Tudo ia bem até a subida da Brigadeiro Luís Antônio. Ali, não sei se pelo calor, pelo ovo, pela lasanha ou pela coxinha, comecei a suar frio e a ver as coisas de modo nebuloso.

Diminui o ritmo e quando cheguei à travessa da Treze de Maio parecia um cágado. Ou seu homógrafo imperfeito.

Milhares de corredores me ultrapassaram: velhos de bengalas, cegos, pernetas e até um homem barbado carregando uma cruz.

Quando estava quase na linha de chegada, a decepção maior: o Super-Homem passou por mim e me deu um tchauzinho.

Aquela derrota ficou entalada na garganta e hoje (31 de dezembro de 1999), enquanto estiver me aquecendo para a prova, só terei pensamento: a vingança contra Super-Homem.

Quem viver, lerá.

(amanhã publico a parte final)


Poeminha épico
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Torero

(A leitora Bruna Favaro pediu e eu obedeço, republicando no Velharias de hoje um texto de 2002. Por coincidência ele fala de Celso Roth)

Os alas e becões assinalados

Da oriental praia paulistana
Partiram em missão desumana
A bater inimigos colorados.

Depois do empate duro e fero,
Três a três em pleno alçapão,
Queriam ao menos 1 a 0,
e o sonho manter no coração.

Em casa, o torcedor,
Na busca do descanso,
quer esquecer o labor.
E talvez afogar o ganso.

Mas não. Ele senta na poltrona
levando nas mãos, ora veja,
O amendoim, a azeitona,
E a latinha de cerveja.

A mulher, que já o conhece,
Sabe que não adianta se bater.
Hoje nem mesmo com prece,
Verá Said, Jade ou SBT.

Assim que ela, bocejo cético,
Sai para dormir seu sono frio,
O Santos, vestido de Atlético,
Entra no Beira-Rio.

Ele dá uma risada
e se pergunta, otimista,
venceremos de goleada,
com jogadas de artista?

Será daquelas que humilham,
e levam o vencido ao divã?
Com belos gols de William
e lances ousados de Odvan?

Robert, em noite inspirada,
fará gols, dará chapéu?
E tremerá a arquibancada
nos dribles de Michel e Léo?

Preto, claro, fará a festa,
Ou então Paulo, no finzinho.
Talvez Cléber, com a testa,
mesmo Renato, de peixinho.

Não importa do gol o autor,
e sim passar à outra fase.
Voltar dos pampas sem a dor,
de outra vez dizer: Foi quase.

Mas o jogo começa e oh, não!
O Inter avança, ataca, assola.
O Santos, recuado e sem ação,
Mal retém nos pés a bola.

A defesa sofre um bombardeio
O meio-campo perde seu eixo
O ataque não diz a que veio…
E ele, sentado, coça o queixo.

Segue tudo nessa perspectiva
Faz o que pode Fábio Costa.
O torcedor, já na defensiva,
Pensa: Que grande droga…

Ele grita: Marquem esse Diogo!
Mas vem a maldição cruel,
Explodem gaúchos em fogo,
Marca o gol Carlos Miguel.

Cenas sombrias revolvem
Lá no fundo da memória
Cenas que não se dissolvem
E ofuscam a passada glória.

O trágico gol de Ricardinho,
O apito de Márcio Rezende,
Lenda sem flor, só de espinho,
Quando virá o seu The End?

Vem o tempo complementar.
O torcedor diz, coçando os pés
Se sai o gol podemos virar,
Mas tem que ser antes dos dez.

Nada de gol e ele diz: Agora
Só se for antes dos vinte
Senão fica em cima da hora.
Dor, vá lá, mas sem requinte.

Tarda o empate e ele diz: OK,
se jogarmos com afinco,
Ainda sinto que verei
o primeiro antes dos trinta.

O relógio chega a quarenta
E ele, entregando os pontos,
Sem acreditar, ainda sustenta:
Quem sabe nos descontos…

Nem vitória, gol ou lhufas…
Ele desliga a TV, sem viço
E prevê, calçando as pantufas,
O dia de gozações no serviço.

Terá um palestrino desbocado
que com sabedoria arrote:
Eu bem que tinha avisado,
É um burro o Celso Roth!

 


“A Divina Comédia” do futebol
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Torero

O leitor certamente já ouviu falar de Dante. Não, não aquele meia que jogou na Ferroviária na década de 50.

Falo de Dante Alighieri (1265-1321), o autor de “”A Divina Comédia”, livro em que ele conta como seriam o inferno, o purgatório e o paraíso.

Pois bem, há alguns dias, antes de dormir, li “”A Divina Comédia”, comi uma feijoada e passei os olhos pelas páginas esportivas desta Folha. Tal combinação gerou um sonho esquisitíssimo, em que eu andei pelos nove círculos do inferno. Mas não um inferno comum. Tratava-se de um inferno futebolístico, no qual em cada círculo havia um tipo de pecador e uma punição diferente. Aliás, nesse inferno não havia círculos, mas campos de futebol.

No primeiro campo estavam os jogadores covardes, aqueles que não têm coragem de dividir uma bola. O seu castigo era ser aguilhoados eternamente por moscas e vespas.

No segundo estavam os fominhas, aqueles que não passam a bola jamais, que tentam partir para cima dos zagueiros e acabam desperdiçando o lance. Esses eram fustigados por um vento constante e inclemente e jamais conseguiam encostar na bola.

No terceiro encontrei os fazedores de cera, os que inventam contusões e ficam atrasando partidas. O castigo desses era machucar-se de verdade a todo instante e sentir dores tão terríveis quanto às que simulavam.

No quarto campo havia os armandinhos. Eles eram forçados a jogar uma partida interminável, sem intervalo nem nada, só tocando a bola de lado, um para o outro, o outro para o um. Um jogo infindável e estéril, no qual jamais havia um drible ou um chute a gol.

No quinto círculo deparei-me com aqueles que deram carrinhos por trás. Esses tinham que jogar num campo de gelo, de modo que jamais conseguiam ficar em pé. E, se um pensasse em ficar deitado, Lúcifer, juiz daquela partida, espetava-o com um tridente.

No sexto ficavam os árbitros que inventam pênaltis e não marcam impedimentos claros, mais ou menos como os que tiraram do Santos o Campeonato Brasileiro de 95. Esses eram colocados no círculo central, cercados por cem diabretes, cada um com um apito, e esses sopravam na orelha daqueles por toda a eternidade.

No sétimo campo vi os torcedores que brigam em estádios e praticam vandalismo. Sua pena era ficarem algemados às arquibancadas vendo um interminável jogo de seu maior inimigo. Presenciei, por exemplo, uma multidão de camisas verdes assistindo a um jogo do Corinthians.

O oitavo campo era a morada dos empresários desonestos. Mas esses não jogavam. Seu castigo é que foram transformados em traves e passavam a eternidade levando boladas.

Pior era o nono e último círculo, destinado aos dirigentes corruptos. Esses perderam seus corpos, e suas cabeças eram usadas como bolas de futebol.

Depois, passei pelo purgatório, onde ficavam os pernas-de-pau, e, então, finalmente cheguei ao paraíso.

Ali, na beira do gramado, aquecia-se o seguinte time: Yashin; Carlos Alberto, Figueroa, Bobby Moore e Nilton Santos; Beckenbauer e Cruyff; Garrincha, Maradona e Pelé. Foi quando Pelé pegou a camisa 11 e falou para mim: “”Você se importa de completar o nosso time? O Rivellino está atrasado”.”

Foi um bom sonho.


Como roer suas unhas com prazer e gosto
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Torero

 

(Para o Velharias de hoje cozinhei um texto de 1999)

Mesmo sendo um amistoso, o nervosismo no jogo de amanhã da seleção será inevitável. Sendo assim, será inevitável que milhões de torcedores acabem roendo suas unhas. Mas isso não precisa ser necessariamente um sofrimento. Já que teremos mesmo que mastigar as preciosas extremidades de nossos dígitos, por que não fazer disso um prazer?

“Como?”, perguntas tu.

“Comendo”, respondo eu.

Minha proposta é que o torcedor faça alguns molhos e mergulhe suas unhas nesses condimentos a fim de deixá-las mais saborosas. Mas isso deve ser feito com estilo, sabedoria e método. Nada de enfiar o dedo na mostarda e ir roendo as unhas. Um pouco de luxo não faz mal a ninguém. Para ajudar o torcedor, consultei uma gastrônoma, Neiva Augusta da Silva, e fornecerei aqui algumas receitas.

Neiva diz que a boa refeição sempre deve começar por um bom couvert. Sua sugestão é um patê de azeitonas pretas, feito à base de iogurte e maionese e temperado com alguma páprica. Você pode mergulhar seu dedão neste fino petisco e aí roer sua unha com gosto. Mas não exagere, lembre-se de que você ainda tem outros quatro dedos para provar.

Nesta refeição de pratos escolhidos a dedo, seu indicador corresponderá à entrada. A entrada, todos sabemos, destina- se a atiçar ainda mais o apetite do torcedor. Para isso, um leve molho à base de alho e azeite é o mais indicado. Use três colheres de azeite extrafino, uma folha de louro ligeiramente torcida para liberar o aroma, uma colher de chá de cardamomo, sementes de mostarda preta e uma colher de óleo essencial de alho. Deixe tudo descansando e, depois, mergulhe seu dedo nesse fino acepipe.

Evite, porém, distrair-se e tirar melecas do nariz com o seu “fura-bolo”. Segundo Neiva Augusta, tal condimento não se encaixa nesse tipo de receita.

Finalmente chegamos ao prato principal, que será fornecido pelo dedo médio. Como aqui cabe um molho mais encorpado, recorreremos ao tradicional bechamel, feito com farinha de trigo, leite, manteiga, sal e uma pitada de pimenta do reino. Caso você tenha uma predileção especial por pimenta e queira colocar uma dose a mais, deixe sua cerveja por perto para não perder nenhum lance do jogo.

O anular será a sobremesa. Para contrastar com o pesado prato anterior, o ideal seria embeber sua unha numa suave calda de chocolate, acentuada com uma gota de xerez. Colocar um pedacinho de cereja em calda debaixo da unha pode dar um charme a mais.

Logo depois do jogo, o toque final: colocar a unha do mindinho num capuccino feito com duas partes de chocolate, uma de café solúvel, três de leite em pó, duas de açúcar comum, uma de açúcar mascavo e uma pitada de bicarbonato de sódio para deixar o líquido mais encorpado.

Depois de uma refeição dessa, seu time pode até ter perdido, mas, estranhamente, você não estará tão decepcionado. Talvez esteja até com um incompreensível ar de satisfação no rosto.

Enfim, este é meu conselho para o Brasil x Argentina de amanhã. Mas, se você é um purista, daqueles que preferem roer suas unhas ao natural, deixo um último lembrete: antes do jogo começar, lave as mãos.


Todo juiz é ladrão!
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Torero

(Recoloco aqui um texto de 24 de novembro de 2005 que ajuda a entender  o pênalti marcado para o Corinthians ontem)

Sim, jurístico leitor e judiciosa leitora, todo juiz é ladrão. E quem diz isso não sou eu nem a torcida colorada. São estatísticos alemães. E não imagino gente mais séria e com mais siso do que estatísticos alemães.

Explico melhor. É que o leitor Roberto Porto, um econometrista (procurei no dicionário e vi que um econometrista não é especialista em ecos, mas um indivíduo versado em econometria, método estatístico de análise de dados e problemas econômicos), enviou-me um artigo publicado no “Journal of Economic Psychology”, intitulado “Favoritism of agents – The case of referees home bias”, que no meu péssimo inglês eu traduziria como “Favoritismo dos agentes – A tendência dos juízes em favorecer o time da casa”. O texto é de Matthias Sutter e Martin Kocher, professores da Universidade de Insbruck, Áustria.

Tomando como base os jogos do campeonato alemão de 2000/ 2001, Sutter e Kocher estudaram dois aspectos da arbitragem: o tempo de acréscimo dado pelos juízes e a marcação de pênaltis.

Em relação aos acréscimos, viu-se que os árbitros tendem a dar mais tempo extra principalmente quando o time da casa está perdendo por um gol de diferença. Neste caso os acréscimos ficam em torno de 2,75 minutos.

Porém, se o time da casa está vencendo por um gol, a média de acréscimos fica abaixo dos dois minutos. Pode não parecer uma grande diferença, mas estes segundos a mais foram fundamentais para que o Internacional vencesse o Brasiliense no último dia 20.

Passemos à parte mais interessante do artigo: os pênaltis.

Segundo os dois teutônicos (que significa alemães, e não um tipo de daltônicos), no campeonato de 2000/2001 foram marcados 76 pênaltis, 55 para os times da casa e 21 para os visitantes. É claro que, como os times da casa geralmente atacam mais, eles deveriam ter mais pênaltis marcados a seu favor. Mas os econometristas foram espertos e procuraram em reportagens quais os pênaltis que foram, nos dias seguintes, aceitos ou refutados pela imprensa.

Dos 55 pênaltis caseiros, 5 foram dados como injustos. Dos 21 pênaltis visitantes, somente 1 foi classificado como ilegítimo. Além disso, não foram dados 12 pênaltis para os times da casa e 19 para os visitantes (como o caso de Márcio Rezende de Freitas no domingo). Ou seja, em 62 jogadas em que deveriam ser marcados pênaltis, os times da casa tiveram 50 penalidades assinaladas (81%). Já os visitantes, que deveriam ter a seu favor 39 marcações, receberam apenas 20 (51%).

Segundo os autores, este favorecimento ao mandante pode ocorrer devido ao barulho, à pressão da torcida. Para tal afirmação, eles se basearam num experimento inglês com 40 juízes. Todos assistiram a um jogo do Campeonato Inglês pela TV. Metade escutava o som (e a torcida), a outra metade apenas via as imagens. Os que tinham acesso ao som foram 15% mais relutantes em marcar as faltas do time da casa.

Em resumo: todo juiz é ladrão! Mesmo que seja sem querer.

Apito amigo
A pesquisa talvez ajude a explicar um pouco o porquê de o Corinthians ter a fama de ser ajudado pelo “apito amigo”, seja ele soprado por Javier Castrili ou Márcio Rezende de Freitas. Como trata-se de uma torcida imensa, que canta e pula durante todo o jogo com um amor quase insano (às vezes sendo mais numerosa e/ou ruidosa que o time da casa), os juízes acabam ficando impressionados e pressionados. E isso acaba causando erros como o de domingo. Mas, antes que me acusem de dizer que os torcedores estimulam o roubo, aviso aos corintianos que isto não é uma acusação. Na verdade é quase um elogio: à torcida, não aos árbitros. Estes deveriam estar acima das pressões, deveriam usar tampões morais nos ouvidos.


Analogias para senhoras de fino trato
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Torero

(Publicado originalmente na Folha de S.Paulo um pouco antes da Copa de 98.)

Os homens esperam ansiosamente pela Copa do Mundo, ainda mais se forem vendedores de materiais esportivos e fogos de artifício. Porém, curiosamente, as mulheres não têm lá muito interesse pelo assunto. Há exceções, é claro, mas a maioria ainda acha o futebol uma atividade sem sentido e beleza.

Tanto é assim que apenas 3,7% dos e-mails futebolísticos que recebo vêm de mulheres.

Creio que, ficando indiferente a essa febre, elas possam estar dando uma mostra de liberdade de espírito e independência intelectual. Mas também é possível que não se interessem pela Copa por pura ignorância futebolística.

Portanto, a fim de facilitar o entendimento dos mistérios do futebol, daqui até a Copa, toda terça-feira, publicarei estas “Analogias paras senhoras de fino trato”, a fim de facilitar a compreensão do esporte para as filhas de Eva.

No primeiro capítulo, hoje, optei por fazer uma comparação com algo que todas conhecem: o corpo humano.

O goleiro, por exemplo, leitoras, são como os glóbulos brancos, também chamados de leucócitos. Eles devem evitar que o gol seja invadido por células inimigas e devem neutralizar qualquer ataque contra o sistema imunológico. Goleiros e leucócitos desempenham um trabalho sacrificado, mas quase nunca lembramos deles. Apenas quando falham, e aí ficamos doentes.

Já os laterais, com a concentração da marcação no meio-campo, passaram a assumir funções mais importantes. Hoje, além de marcar, eles têm que se projetar ao ataque e fazer a função dos antigos pontas. Com tanto trabalho, só uma comparação é possível: eles são os pulmões do time.

Os zagueiros devem ser associados ao estômago. Eles trabalham o tempo todo e têm que estar preparados para digerir qualquer coisa. Se algum atacante ousar chegar até ali, deve ser esmagado e comprimido. Alguns beques, como Júnior Baiano, costumam levar isso ao pé da letra.

Os dois volantes são como o coração. Aliás, um faz a função de sístole e outro de diástole. Eles são vitais para o bom funcionamento do time, pois bombeiam a bola para o ataque e oxigenam a defesa. Assim como o coração, devem bater, mas não demais.

Quanto aos meias de ligação, não há dúvida: eles são o cérebro de uma equipe. Em fração de segundos, eles têm que dominar a bola, perceber alguém se deslocando e mandar a bola no pé desse companheiro antes de ser derrubado por um volante do outro time.

Por fim, há os atacantes. Gostaria de evitar certo tipo de comparações, principalmente porque os leitores da Folha são sofisticados, inteligentes e sutis. Por isso, cara leitora, tentarei ser discreto e não farei aqui uma analogia explícita. Direi apenas que o atacante tem que saber jogar enfiado, ser incisivo, firme, obsessivo, destemido e, principalmente, tem que crescer em determinados momentos da partida.

Enfim, um time é como um corpo humano. Tem várias partes, cada uma com uma função e, se uma delas falha, podemos sofrer uma morte súbita.


Reflexões quase sérias sobre a vida e a morte
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Torero

(No “Velharias” de hoje, um texto em que eu devia estar meio macambúzio)

Numa tarde em que não tinha nada que fazer, comecei a pensar na relação que o esporte tem com a nossa vida.

Como a maioria, achava que essa relação se restringia às aulas de educação física e àquele curioso encontro de barrigudos nos fins-de-semana, que os otimistas chamam de futebol.

Mas eu estava errado. Sim, eu estava. O esporte está presente em cada mísero momento de nossa existência.

Para começo de conversa, nascemos em decorrência de algo que lembra bastante um esporte. Claro que há controvérsias.

Os escritores de Sabrina, por exemplo, descreveriam tal cena assim: “E então eles deitaram-se sobre lençóis de seda, tendo ao fundo o brilho gentil da lua prateada, vivendo intensamente cada segundo daquele instante em que não eram mais Conrad e Jane, mas um novo e único ser, que talvez pudesse ser chamado de…amor!”

Bem, não quero que pensem que sou grotesco, mas, olhadas as coisas com frieza, a situação parece-se mais com uma luta greco-romana.

Porém se há alguma dúvida nesse ponto, já no seguinte o paralelo é perfeito.

Feito o hole-in-one digno do mais genial golfista, nossa vida começa com nada mais, nada menos que uma corrida: a corrida dos espermatozóides, nossa primeira e mais importante competição, a qual, se não vencêssemos, não participaríamos de nenhuma outra.

Mal nascemos e já participamos de concursos de beleza com nossas mães nos comparando com outras crianças, depois vêm as disputas de inteligência para ver quem aprende a falar primeiro e por fim a ginástica rítmica, onde ganha quem consegue ficar de pé.

Passado esse tempo, começamos a nos interessar por outras competições.

Vêm os papagaios, as bolinhas de gude, os piões e, para as crianças mais modernas, os videogames.

Creio que continuaríamos brincando com joysticks ao longo de toda a nossa vida se pudéssemos, mas um dia nossos pais nos vêm dizer que aquilo pode fazer mal a vista e nos obrigam a praticar os esportes tradicionais.

Aí somos introduzidos ao mundo do futebol, do basquete, do judô, do vôlei, da ginástica olímpica e da natação.

Esse período mais ativo costuma prolongar-se dos 10 aos 18 anos, período que corresponde também ao da descoberta sexual, esse, sim, um esporte radical, cheio de perigos e emoções fortes.

Então vem a fase do trabalho e somos levados a exercitar outras habilidades esportivas.

A escalada social é mais difícil que alpinismo, sobreviver com um salário mínimo é uma corrida de obstáculos e a competitividade do mercado faz com que qualquer ringue de vale-tudo pareça mais um berçário.

E se você já enjoou de tanto esporte, lembre-se que ainda há o casamento, onde temos que ter a paciência de um enxadrista, a dissimulação de um jogador de pôquer, e o molejo de um corredor de marcha.

Assim corre nossa vã existência até que, finalmente, chegamos ao momento de passar para o outro lado do mistério.

É o fim de uma terrível queda de braço com a morte, luta que, no fim, sempre perdemos.

O que nos faz pensar de que adianta ter ganho aquela primeira corrida.